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Do colonialismo ao multipolarismo: o esgotamento do sistema global e seus possíveis caminhos

“Cada homem traz em si o dever
de acrescentar, de domar, de revelar.
São culpadas as vidas empregadas
na repetição cômoda
das verdades descobertas.”
José Martí [1]

Para tempos de incerteza, como os que vive a Humanidade neste primeiro quarto do século 21. São, justamente, tempos de acrescentar, domar, revelar verdades novas em vez de repetir as descobertas de outrora, para abrir caminho a uma reflexão inovadora sobre o presente. É a isso que nos remete o que foi dito em 1997, com o otimismo de fundo que caracterizou toda a sua obra, pelo historiador Immanuel Wallerstein, ao afirmar que a primeira metade do século 21 seria “mais dificultosa, mais perturbadora e, no entanto, mais aberta que tudo o que conhecemos durante o século 20.” [2]

Wallerstein sustentava sua afirmação em três premissas. A primeira consistia em que “os sistemas históricos, como todos os sistemas, têm vidas finitas. Têm um começo, um longo período de desenvolvimento e, finalmente, morrem, quando se afastam do equilíbrio e alcançam pontos de bifurcação.” A segunda era que “nestes pontos de bifurcação surgem duas novas propriedades: pequenos inputs provocam grandes outputs (enquanto, durante o desenvolvimento normal, ocorre o contrário: grandes inputs provocam pequenos outputs) e o resultado de tais bifurcações é intrinsecamente indeterminado.” E a terceira, acrescentava, era que “o moderno sistema-mundo, como sistema histórico,” entrou em uma crise terminal, e não é verossímil que exista dentro de 50 anos. No entanto, já que o resultado é incerto, não sabemos se o sistema (ou os sistemas) resultante será melhor ou pior do que o atual, mas sabemos que o período de transição será uma etapa terrível, cheia de turbulências, já que os riscos da transição são muito altos, os resultados incertos e muito grande a capacidade de pequenos inputs para influenciar tais resultados.

Atender a essas premissas exige um pensar que privilegie os processos sobre os eventos. Com isso, a compreensão dos limites de nossa própria época pode ganhar em clareza se a situarmos no ciclo histórico mais amplo em que transcorrem os tempos que vivemos.

O ciclo em que estamos é o da terceira transição no desenvolvimento do moderno sistema mundial. A primeira ocorreu entre 1450 e 1650, na passagem da Idade Média para a Moderna, que incluiu a transição de um mundo organizado em economias e sociedades regionais e sub-regionais para outro estruturado a partir do primeiro mercado mundial na história da Humanidade.

Essa transição incluiu ainda uma guinada geocultural, que levou a Europa Noratlântica – em primeiro lugar, e com ela o resto da Humanidade – a passar de uma visão do mundo centrada nos problemas da salvação da alma para outra organizada em torno da acumulação de lucro. Isso, por sua vez, deu lugar à transição do papel dominante do pensar teológico para o do pensar econômico na organização do saber e do senso comum dominante em nossas sociedades.

Antropoceno: a crise ambiental global sob o olhar da Nossa América

Essa primeira transição levou à organização e ao desenvolvimento do mercado mundial como um sistema colonial, entre 1650 e 1950. A eficácia do sistema de exploração assim organizado explica sua longa duração e suas consequências de longo alcance na geopolítica e na geocultura do moderno sistema mundial, expressas, por exemplo, na persistência da colonialidade, da etnicidade e do racismo nas relações entre o Sul global e o núcleo Noratlântico do sistema mundial até o presente.

A segunda transição situa-se na Grande Guerra de 1914-1945, equivalente – mutatis mutandis – à dos 30 Anos, que entre 1618 e 1648 desintegrou as bases institucionais da Idade Média tardia na Europa. Nesse período tornou-se evidente, por exemplo, que não bastaria uma Sociedade das Nações (coloniais) para enfrentar os problemas que emergiam a partir de guerras locais – como as do Japão na Manchúria e na China –; guerras civis – como as da China e da Espanha – e da ascensão dos movimentos de libertação nacional na Ásia e na África, desde a Índia (que viria a culminar em 1948) até a África do Sul (que só aboliria o apartheid em 1994).

Essa segunda transição culminou com duas iniciativas que levaram o moderno sistema mundial de sua organização colonial de origem à internacional – interestatal, na realidade –, hoje afetado pela crise a que se refere Wallerstein. Uma foi a conferência de Bretton Woods, em julho de 1944, que estabeleceu as bases para o mercado mundial dolarizado que ainda temos. A outra foi a conferência de São Francisco, que entre abril e junho de 1945 fez do sistema colonial um sistema de Nações Unidas.

Essa mudança teve um enorme êxito em ambos os planos em um prazo relativamente curto. Em sua primeira fase, o número de Estados (e mercados) nacionais no sistema mundial passou de meia centena para cerca de 200. No plano econômico, por exemplo, o PIB mundial passou de 10 trilhões de dólares para algo mais de 63 trilhões no ano 2000 [3]. No mesmo processo, a população mundial passou de 2,5 bilhões para 6 bilhões, enquanto a renda per capita mundial aumentou de 3.659 dólares para 10.262 [4]. Ao mesmo tempo, no decorrer de uma geração – entre 1945 e 1973 – essa organização internacional começou a se ver ultrapassada pelas consequências de suas próprias conquistas, diante de problemas de um tipo inteiramente novo, como a crise socioambiental de que padecemos hoje.

Hoje caberia dizer que o início de uma terceira transição tornou-se evidente diante da incapacidade manifesta do sistema internacional de tomar consciência de seus próprios limites, diante do fato de que a racionalidade econômica de sua geocultura vinha sendo questionada pela racionalidade ecológica da crise, como apontou a encíclica Laudato Si’ [5]. Esse questionamento anunciava então o início de uma nova transição geocultural, cada vez mais carregada de futuro.

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Hoje, a dificuldade de uma solução passa, em primeiro lugar, por identificar as opções de futuro que emergem da própria crise. Essas opções não se limitam a encontrar formas novas de tornar o desenvolvimento sustentável – cada vez mais associado ao crescimento econômico sustentado – mas sim em buscar o caminho mais adequado para viabilizar a sustentabilidade do desenvolvimento humano. Assim, a necessidade de enfrentar esse tema corresponde à de integrá-lo aos debates em curso em torno do Antropoceno, como marco socioambiental da transição em curso, e do esgotamento dos mecanismos estabelecidos pelos acordos de Bretton Woods para organizar e adequar o mundo às realidades que emergem da organização internacional do mercado mundial, como a que vem tomando forma em torno dos Brics.

Nesse sentido, a chave maior dos conflitos de nosso tempo está em compreender que a globalização não consistiu na criação de uma nova estrutura do mercado mundial, mas sim em um processo de mudança entre uma estrutura que se esgota e outra que começa a tomar forma. A intensidade histórica desse processo geral é evidenciada pelo fato de que a organização colonial do sistema mundial abrangeu cerca de 400 anos, e sua transição para uma organização internacional durou cerca de 36. Em contraste, essa organização internacional, estruturada em torno de um núcleo Noratlântico, começou a se fragmentar assim que terminou aquele século 20 “curto” que, segundo o historiador inglês Eric Hobsbawm, se estendeu “de 1914 até o fim da era soviética”, em dezembro de 1991. [6]

Assim, a estrutura resultante da transição de 1914-1945 vem sendo ameaçada desde o final do século 20 pelo desenvolvimento de núcleos econômicos de crescente relevância no Sul Global, como a região do Indo-Pacífico, por economias como as do Brasil e do México, e pela indubitável liderança que a China vem assumindo em zonas cada vez mais relevantes do mercado mundial. Nessas transformações reside a principal raiz do antagonismo entre unipolarismo e multipolarismo, que hoje atravessa todo o sistema mundial.

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O que resultar disso poderá ser: um mercado mundial estruturado multilateralmente, que ofereça possibilidades mais democráticas de organização às sociedades na grande tarefa de enfrentar a crise global socioambiental; ou uma estrutura autoritária que tente subordinar essa tarefa à acumulação ilimitada de capital nos principais núcleos de poder de uma ordem unipolar. Ir além dessas opções implica criar a possibilidade de outras, a partir do interior do próprio processo de transição, que desemboquem naquilo que ainda não temos, mas de que já necessitamos: sociedades prósperas, equitativas, sustentáveis e democráticas, que façam do desenvolvimento humano seu objetivo maior.

Tais são os tempos do nosso tempo. E é bom sabê-lo, para ir além da comodidade das verdades descobertas a que se referia José Martí às vésperas da transição do sistema colonial para o internacional — tão próxima e incerta então quanto a que nos cabe viver hoje.

Alto Boquete, Panamá, 10 de junho de 2025

[1] 1975, XIX, 303 [2] Conferência no Fórum 2000: Inquietações e esperanças no umbral do novo milênio, Praga, 3 6 de setembro, 1997. Publicada em Iniciativa Socialista, 47, dezembro 1997. https://www.herramienta.com.ar/incertidumbre-y-creatividad [3] https://es.wikipedia.org/wiki/Anexo:Evoluci%C3%B3n_del_PIB_mundial_en_los_dos_%C3%BAltimos_milenios [4] https://es.wikipedia.org/wiki/Poblaci%C3%B3n_mundial [5] Laudato Si’, parágrafo 105. [6] História do Século XX (2012: 7). Crítica, Barcelona.

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Tradução de Ana Corbisier

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