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Xadrez da dupla ameaça: Venezuela, EUA e o Brasil como fiel da balança regional

Em 1986, foi criada a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), a partir da Resolução 41/11 da Organização das Nações Unidas (ONU), proposta pelo Brasil em meio a preocupações e ameaças de guerra entre potências nucleares da Guerra Fria. O texto reafirma a importância da diplomacia preventiva, da mediação, da pacificação, do peacekeeping (manutenção da paz) e da peacebuilding (consolidação da paz).

Em 1950, os Estados Unidos desativaram a 4ª Frota, que somente seria oficialmente reativada em 5 de maio de 2008, no contexto de descobertas do pré-sal em 2006. Poucos dias depois, em 23 de maio de 2008, o Brasil liderou a criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), concebida como resposta política e diplomática voltada à integração regional. Um de seus pilares foi o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), fórum destinado a promover a cooperação em segurança e a reforçar a autonomia estratégica da região frente à influência de potências externas.

Pós-reativação, as primeiras operações da 4ª Frota na América do Sul ocorreram já em julho de 2008, sinalizando a retomada do interesse estratégico dos EUA sobre a região. Em setembro do mesmo ano, a Petrobras extraiu o primeiro barril de petróleo do pré-sal, marco histórico que consolidou o potencial energético brasileiro no cenário internacional.

Enquanto os Estados Unidos enfrentavam a crise financeira de 2008, o Brasil vivia um período de crescimento econômico e projeção global. Nesse contexto, em 2010, o presidente Lula lançou a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), ampliando o espaço de concertação política e integração sem a presença dos EUA e do Canadá.

Ao articular a criação destes dois organismos de grande relevância regional, Celac e Unasul, o Brasil mostra ter captado o recado estratégico da reativação da 4ª Frota estadunidense e respondido com rapidez. Essas iniciativas ampliavam a influência brasileira no continente e reduziam a presença dos Estados Unidos em seu chamado “quintal estratégico”. Contudo, a condição de liderança regional exige consistência política e diplomática, algo que o Brasil tem oscilado em manter. Prova disso é que ambas as entidades foram sabidamente enfraquecidas durante o governo Bolsonaro, com a retirada do país em 2019 e 2020, respectivamente.

O ofensiva contra a Venezuela

Em julho de 2024, após mais um processo eleitoral contestado pela direita radical venezuelana — que já havia produzido o episódio do “autoproclamado presidente interino Guaidó” —, o Brasil vacilou ao não reconhecer a reeleição de Nicolás Maduro. Tal hesitação acabou alimentando a narrativa da extrema-direita e dando fôlego a setores liberais alinhados com a pilhagem dos recursos estratégicos da região: tanto a Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA), na Venezuela, quanto a Petrobras e a Eletrobras, no Brasil.

Sem pão, sem aço: o ataque a Marina Silva e a luta por uma industrialização socioambiental

Atualmente, a performática extrema-direita estadunidense alega que a Venezuela seria um “narcoestado”, narrativa que tem sido refutada pela União Europeia e pela ONU. A ofensiva de Washington revela instrumentalização política para supostas operações de combate ao crime transnacional em território soberano venezuelano, o que configura clara violação de princípios do Direito Internacional, se confirmado algum ataque à nação venezuelana diante do envio de contingentes militares à costa da Venezuela.

Pavonear-se, como fazem os EUA, não revela a figura de invasores convencionais, mas sim a de agitadores. O objetivo é criar instabilidade política e militar em vez de promover cooperação para combater o grande volume do tráfico de drogas para os EUA que, segundo a própria ONU, sai dos Andes e passa pelo Oceano Pacífico. Vale lembrar que a Venezuela não tem acesso a esse mar e a América do Norte falha em conter a entrada e o maior consumo de cocaína e cannabis no mundo.

Trata-se, em essência, de uma “Stevebanonização” do campo militar, em que táticas de desinformação, histeria discursiva e mobilização de medo são transpostas da arena política para a esfera de segurança internacional.

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No Brasil, o Assessor Especial da Presidência para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, ressaltou que a posição do governo brasileiro é contrária a qualquer interferência em assuntos internos do país vizinho. Todavia, interferiu na medida em que não reconheceu as eleições na Venezuela — tornando o Brasil correia de transmissão da ingerência americana — e retificou a exigência de transparência na divulgação das atas das seções eleitorais venezuelanas. Em outubro de 2024, vetamos o ingresso da Venezuela no Brics pelas mesmas razões.

Retórica, prática e o papel do Brasil

Se houvesse de fato uma intenção séria de confrontar a Venezuela como “narcoestado”, já teríamos visto pousar em Caracas alguns bombardeiros estratégicos russos — como já ocorreu em outras ocasiões, inclusive no episódio em que Bolsonaro elevou tensões com o regime de Maduro. Hoje, ouso dizer, até a China poderia se somar a esse tipo de gesto simbólico.

Pergunta que se impõe: os Estados Unidos vão pagar para ver? A experiência indica que não. Vale lembrar que, em 2014, Washington chegou a anunciar que invadiria a Síria, sob a justificativa de supostos ataques químicos do governo contra sua própria população. Contudo, diante da movimentação de meia dúzia de navios russos no Mediterrâneo, a narrativa perdeu força. Coincidência ou não, semanas depois, toda a atenção foi desviada para o episódio do atentado de Boston. Distração? Talvez. Mas o efeito foi imediato: a “invasão à Síria” desapareceu do horizonte.

Nesse mesmo contexto da narrativa do “narcoestado”, decidiu-se implementar no Paraguai uma base militar sob o pretexto de combater o crime organizado. Em outras palavras, os Estados Unidos recorrem a uma tática clássica do xadrez: a “dupla ameaça”. Atacam duas peças ao mesmo tempo; o defensor só pode salvar uma — e a outra, inevitavelmente, é capturada.

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Não há dúvidas de que os Estados Unidos buscam também pressionar indiretamente a Colômbia, cuja projeção regional se reduziu desde a eleição de Gustavo Petro, o primeiro presidente de esquerda do país, crítico declarado da OTAN e da presença de bases militares estrangeiras em território colombiano.

O Brasil encontra-se na posição de fiel da balança no tabuleiro geopolítico sul-americano. A omissão diante da ofensiva narrativa do “narco-continente” e da aproximação militar estadunidense na América Latina apenas gera perdas estratégicas, fragilizando organismos como a Unasul e a Celac e abrindo espaço para maior ingerência externa. Em contrapartida, uma postura proativa pode transformar a ameaça em oportunidade: revitalizar os instrumentos regionais de paz e cooperação, fortalecer o Brics e consolidar a liderança brasileira na América do Sul e no espaço latino-americano mais amplo.

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