Por meio do enquadramento midiático, a imprensa tenta apagar, deliberadamente, que os povos indígenas foram empurrados para fora dos processos decisórios, apesar de serem os mais afetados pelo avanço predatório das mineradoras, do agronegócio e das empresas de energia
A cobertura da mídia hegemônica sobre a mobilização das comunidades indígenas na COP30 no último dia 11 revela muito mais sobre o projeto político desses veículos do que sobre o episódio em si. Sim. Quando preferiram reduzir a entrada forçada no espaço reservado do evento a um simples “tumulto” ou “invasão”, grandes veículos atualizaram a antiga estratégia de transformar resistência em desordem, reivindicação em ameaça e protagonismo indígena em problema de segurança. Essa narrativa — repetida à exaustão — funciona como mecanismo de redução do debate climático, retirando dele suas contradições mais profundas e, sobretudo, os sujeitos históricos que mais preservam o que o capital insiste em destruir.
Manchetes como, por exemplo, “Invasão da COP30 por movimentos constrange governo brasileiro” e relatos que falam em “correria”, “quebra-quebra” ou classificam a mobilização como ação de “indígenas e manifestantes vinculados ao PSOL” revelam uma operação discursiva típica da mídia hegemônica, que busca transformar um ato político de reivindicação em espetáculo de desordem. Ao escolher verbos como “invadir” e ao enfatizar o suposto “constrangimento” ao governo, essas chamadas deslocam o foco do problema real — a exclusão histórica dos povos originários dos espaços de decisão climática — para uma narrativa que criminaliza quem luta por participação.
Estética do conflito
Além disso, ao sublinhar vínculos partidários específicos, os veículos tentam reduzir a legitimidade da mobilização a uma disputa ideológica, evitando enfrentar a crítica estrutural ao modelo de governança que mantém corporações e Estados como protagonistas, enquanto relega povos indígenas e movimentos sociais à margem. Essas manchetes, assim, operam politicamente para defender a ordem vigente e desqualificar quem ousa questioná-la.
Como é possível ver através de alguns exemplos, o enquadramento midiático da imprensa tenta apagar, deliberadamente, que os povos indígenas foram empurrados para fora dos processos decisórios, apesar de serem os mais afetados pelo avanço predatório das mineradoras, do agronegócio e das empresas de energia. Não se tratava de mero pedido de acesso. Se tratava de reivindicação política por participação efetiva em negociações que definirão o futuro de seus territórios e de seus modos de vida. A mídia, contudo, preferiu a “estética do conflito” à análise das responsabilidades estruturais.
Essa postura se inscreve em uma lógica mais ampla de cobertura sobre as questões climáticas, a qual, ao mesmo tempo em que abraça a retórica da “sustentabilidade”, evita confrontar os interesses econômicos que moldam a crise. Na COP30, essa lógica se intensificou. A mídia brasileira (fortemente dependente de financiamentos, publicidade e relações com setores como o agronegócio, as mineradoras e as grandes indústrias) não poderia se dispor a legitimar um ato que, na essência, questionava a presença e o protagonismo dessas empresas na própria conferência. A imagem de indígenas pressionando para entrar no espaço reservado ameaçava o consenso fabricado de que todos os atores estão “unidos pelo clima” — um mantra midiático que esconde desigualdades profundas.
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Ao representar os povos originários como intrusos em um ambiente supostamente técnico e diplomático, certas mídias hegemônicas reforçaram uma hierarquia racializada e colonial que ainda estrutura o campo da política socioambiental. O discurso implícito é evidente. Existem aqueles com legitimidade para negociar o clima (governos, corporações, especialistas certificados) e aqueles cujo papel deve ser limitado à performance cultural para fotos e vídeos institucionais. Quando os indígenas atravessam essa fronteira simbólica e material, a mídia reage como “guardiã da ordem”, reposicionando-os como “perturbadores”. O incômodo midiático não é com o ato em si, mas com o deslocamento de papéis.
A cobertura também omite que a exclusão indígena forma parte de um desenho institucional de conferências internacionais. A COP30, como tantas outras, mantém zonas de acesso diferenciadas — negociações restritas a chancelerias, áreas corporativas travadas por credenciamentos especiais e, na base, os espaços destinados à sociedade civil (geralmente reduzidos a vitrines de narrativas, não a arenas de decisão). Quando os povos originários se insurgem contra esse arranjo, denunciam uma arquitetura global que transforma quem mais protege o Planeta em figurante do debate climático. Mas essa crítica estrutural não aparece nas manchetes.
Ademais, a imprensa tratou a reação das delegações internacionais com cordialidade exagerada, reforçando a ideia de que o problema estava nos métodos indígenas, e não na exclusão estrutural que os obrigou a agir. Poucos veículos questionaram o absurdo de uma conferência sobre clima na Amazônia limitar a presença de quem vive, protege e depende diretamente desse bioma. Boa parte da cobertura preferiu manter a imagem de normalidade institucional, ainda que essa normalidade se sustente na marginalização de saberes, das práticas e dos modos de cuidado que são fundamentais à preservação ambiental.
Outro aspecto omitido é que a mobilização indígena na COP30 faz parte de uma trajetória histórica de luta contra projetos que devastam territórios em nome do crescimento econômico. Da resistência contra hidrelétricas e rodovias à denúncia da mineração ilegal e do envenenamento por agrotóxicos, os povos originários sempre estiveram na linha de frente do enfrentamento à destruição ambiental. Quando exigem lugar nas negociações, trazem consigo essa memória política. Ao ignorar esse percurso, a mídia reforça a ideia de que se tratou de um “ato isolado”, e não de continuidade de uma luta que antecede e ultrapassa a COP30.

O tratamento midiático enviesado também reforçou a narrativa governamental de que o Brasil lidera a agenda climática global, apagando as contradições presentes nas políticas domésticas. Ao cobrir o episódio como “desordem”, esses meios de comunicação blindaram o governo federal de questionamentos estruturais: a) Como reivindicar protagonismo climático mantendo incentivos ao agronegócio? Como defender os territórios dos povos originários concedendo licenças para expansão mineradora? Como sustentar que quer solucionar a questão indígena com suas políticas tímidas diante de conflitos territoriais? A mídia hegemônica mais reacionária preferiu celebrar a “diplomacia verde” a confrontar as fissuras internas que os povos indígenas expuseram com sua mobilização.
A estratégia discursiva também cumpriu a função de deslegitimar a crítica. Ao enquadrar a mobilização como “tumulto”, “confusão” ou “radicalismo”, a mídia tentou deslocar a racionalidade indígena para o campo da emoção e da irracionalidade, uma tática bem conhecida pelos povos racializados. Quando os argumentos são fortes demais e expõem a incoerência institucional, desloca-se a crítica para uma disputa moral. Assim, evita-se discutir o essencial, ou seja: por que aqueles que mais preservam a floresta estão fora das negociações?
A tática de desqualificação por enquadramento é uma das formas mais antigas — e eficientes — de operação da mídia hegemônica quando seu objetivo é esvaziar a legitimidade de movimentos sociais. Em vez de enfrentar as razões da mobilização, suas pautas estruturais e os conflitos de poder que ela revela, esses veículos preferem deslocar o foco para elementos periféricos, detalhes isolados ou imagens cuidadosamente escolhidas que produzam, no público, a sensação de que ali não há reivindicação coletiva, mas desordem, irresponsabilidade ou falta de seriedade. Um exemplo emblemático ocorreu em Salvador, Bahia, durante uma greve dos rodoviários do transporte urbano, ocorrida há quase duas décadas. A manchete de capa que deveria registrar a força da passeata, a dimensão da paralisação e o enfrentamento duro entre trabalhadores e as empresas, destacou apenas um manifestante com uma latinha de cerveja na mão (nunca esquecerei aquela foto de capa!). O objetivo era substituir a potência política da passeata, que paralisou o trânsito na capital baiana com as reivindicações trabalhadoras, por um detalhe que reduzisse o movimento ao estereótipo do “baderneiro”, desviando o olhar do conflito estrutural entre capital e trabalho. Esse enquadramento fabricou sentidos, construiu percepções e, sobretudo, delimitou o campo do aceitável para muitas pessoas, pois transformou uma luta legítima em caricatura, um problema social em “desvios de conduta”. É assim que a mídia, ao invés de informar, administra consensos: despolitizando o que é essencialmente político e garantindo que as demandas das classes trabalhadoras permaneçam à margem do debate público.
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Voltando ao ato de resistência dos indígenas no último dia 11 de novembro, a partir das manchetes veiculadas — como “Imagens mostram momento em que manifestantes invadem o espaço da COP30. Veja vídeo”, “Indígenas tentaram entrar na Blue Zone, área restrita do evento, e entraram em confronto com seguranças da ONU”, “COP30: manifestantes entram em confronto com seguranças da ONU em Belém”, “Grupo tenta invadir COP30 e deixa ao menos um segurança ferido” — torna-se evidente que, para além de relatar fatos, a mídia hegemônica construiu, de forma calculada, o cenário político que desejava legitimar. Esse tipo de cobertura sobre a COP30 reafirmou o papel do jornalismo hegemônico como mediador dos interesses que estruturam a economia e a política ambiental no Brasil.
Ao criminalizar, desqualificar e marginalizar a presença indígena, essas manchetes protegeram os verdadeiros beneficiários da exclusão — governos, corporações e setores econômicos que precisam, mais do que tudo, de um debate climático domesticado. É que a presença indígena coloca em risco esse consenso, porque desorganiza a coreografia diplomática; rompe a estética da harmonia; expõe a farsa verde que sustenta as negociações. Por isso causa tanto desconforto. Por isso precisa ser narrada como “desordem”.

