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Realpolitik, João Paulo II e o dinheiro sujo que derrubou o Comunismo na Polônia

Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a transformais num covil de ladrões.Mateus 21:13

No dia 22 de junho de 1983, o Sol mostrou seu rosto inclemente na cidade de Roma. Era o início do verão e, para uma jovem de 15 anos, soava como um imperativo sair de uma casa modesta e pequena, dentro da Cidade Estado do Vaticano, para sentir no rosto um pouco do alívio da brisa da noite de um longo dia que já caminhava para o seu fim. Emanuela Orlandi (1968 – desaparecida), era filha de um funcionário “faz tudo” da Santa Sé. Estamos falando, portanto, de uma adolescente que nasceu num dos lugares mais incomuns do planeta: o Vaticano. Entretanto, isso se tornaria sinal de maldição. 

No crepúsculo da tarde, ela ligou para casa pela última vez e nunca mais foi vista, deixando uma mensagem desconcertante na secretária eletrônica da família: “Mamãe, eu fui escolhida para fazer uma campanha para a marca de cosméticos Avon, voltarei um pouco mais tarde”. Do outro lado da linha, a mãe ouviu o baque do atrito do telefone público, algo apressado, no gancho. 

A história é muito conhecida, tendo gerado vários documentários, livros, capas de jornais e uma miríade de teorias da conspiração, incluindo uma em cartaz na Netflix. Os pais de Emanuela logo ficaram atordoados ao ouvirem o recado da filha: como assim “campanha para a Avon?”. Soava tão peculiar que o primeiro pensamento do pai e da mãe foi que a filha estivesse oferecendo uma desculpa para se encontrar com uma paquera, como seria comum para a sua idade. 

Contudo, as horas foram passando, até que os pais resolveram alertar a Guarda Suíça Vaticana — não a que desfila com uniformes coloridos (esta é para consumo televisivo), mas a que porta ternos pretos e é fortemente armada por “Uzi” israelenses. Foi preciso percorrer a Praça de um lado ao outro, onde ficavam os apartamentos funcionais, até um prédio discreto chamado “Caserna da Guarda Suíça Vaticana”, encimada pela heráldica do Papa Júlio II (1443 – 1513). 

No mundo Vaticano, há uma coisa que a Guarda Suíça odeia mais do que casos de deserção ou homossexualidade em suas fileiras: cooperar com a polícia italiana para quaisquer fins. Mas não havia como recuar, era imperativo que os “Carabinieri” fossem informados do desaparecimento de Emanuela. 

A história que estaria por emergir significaria uma ferida purulenta no coração do Vaticano, um abismo de teorias que levariam invariavelmente aos corredores da Santa Sé, envolvendo altos escalões do Clero. Anos mais tarde, o véu do mistério seria rasgado pela confissão de Sabrina Minardi (1960), amante de Enrico De Pedis (1954 – 1990), o temido chefe da “Gangue Magliana”. Ela narrou à justiça italiana como De Pedis sequestrou a adolescente a pedido de um homem vestido com uma espécie de saia longa preta com muitos botões. Esta descrição de Sabrina Minardi faria toda a diferença para a polícia italiana. É exatamente aqui que devemos dissecar o nosso sinistro personagem.

Qual católico, por mais obtuso e fundamentalista que seja, poderia negar que não foram apenas terços marianos rezados aos pés da Virgem que derrubaram o regime comunista na Polônia, mas fluxos massivos de dólares do IOR, ao custo da vida de uma jovem de 15 anos? (Foto: Sejmie RP / Wikimedia Commons)

Seria improvável que Sabrina Minardi conhecesse o Arcebispo Paul Casimir Marcinkus (1922 – 2006), o chefe do Banco do Vaticano. Entretanto, a polícia da Itália, já montando várias pistas sobre as ligações perigosas de Marcinkus, um dos homens fortes do Vaticano, ofereceu uma foto do Arcebispo a fim de Sabrina apontar se o “homem de saias” se tratava daquele da foto, e ela disse um “sim!” inequívoco.

Pressionada pela polícia, disse mais: “Eu me lembro do meu namorado [Enrico De Pedis] entregar a garota a este homem, ele estava postado à porta de um sedã preto e grande, possivelmente uma Mercedes Benz”. O motivo do sacrifício e do martírio de Emanuela não era e nem poderia ser teológico, mas terrivelmente terreno. A gangue queria de volta o dinheiro que havia perdido na quebra do Banco Ambrosiano, um colapso financeiro orquestrado por alavancagens sem lastro promovidas por Paul Marcinkus. 

Até hoje, o depoimento de Sabrina Minardi não foi provado e os principais personagens envolvidos estão todos mortos. Ainda assim, é pouco provável que a polícia italiana, um dia, tivesse tido a real intenção de implicar Marcinkus, o Vaticano, ou mesmo manchar a imagem do Papa numa história de filme noir. Talvez a intrincada história fosse parar em ouvidos políticos interessados em ter cartas nas mãos, para sacá-las quando necessário contra a máxima instituição católica. É assim que a política italiana funciona até hoje.

A Santa Aliança: Guerra Fria, Máfia e Maçonaria

Este era o mundo em que habitava Paul Marcinkus, o homem em que o Papa João Paulo II (1978 – 2005) manteve no poder do Instituto para Obras de Religião (IOR) por mais de uma década após o escândalo explodir. Para o Papa polonês, Marcinkus era um peão indispensável. Um operador que sabia, como ninguém, fazer o dinheiro fluir, sem que o Pontífice precisasse perguntar sobre sua origem ou o rastro de sangue que as notas de dólares deixavam. Um assunto mundano demais para o Vigário de Cristo na Terra se preocupar. O foco da cruzada geopolítica de João Paulo II era outro: contra o comunismo.

O silêncio que pode preceder a omissão: os primeiros 90 dias do Papa Leão XIV

Para derrubar esse sistema político e ideológico no Leste Europeu — especialmente tentando inflar o número de sindicatos na Polônia, através do “Sindicato Solidariedade” (dos “Marítimos e Trabalhadores da Construção Naval”), oferecendo proteção ao seu líder carismático Lech Wałęsa (1943) — era preciso dinheiro, muito dinheiro. O Papa polonês pedia e Marcinkus executava com obediência canina. A estratégia adotada por Marcinkus foi forjar o que se pode chamar de uma “Santa Aliança” profana. De um lado, o tesoureiro da “Cosa Nostra”, Michele Sindona (1920-1986); do outro, Roberto Calvi (1920-1982), presidente do já mencionado Banco Ambrosiano e, crucialmente, membro da loja maçônica subversiva Propaganda Due (P2). A P2, sob o comando do “Venerável Mestre” Licio Gelli (1919 – 2015). 

A P2 não era uma maçonaria comum, funcionava como um Estado paralelo, uma rede de mais de 900 membros que incluía chefes de todos os três serviços secretos italianos, 48 generais, ministros de Estado, parlamentares e industriais, todos unidos por um juramento anticomunista e o objetivo de controlar a República Italiana por dentro.

Para a Cúria de João Paulo II, a P2 não era uma ameaça, mas um aliado estratégico. A loja fornecia a infraestrutura política e financeira para as operações anticomunistas do Papa. O serviço de inteligência militar italiano (SISMI) rastreou “uma soma notável” partindo do IOR com destino à Igreja polonesa para financiar o “Sindicato Solidariedade”

Muitos outros personagens estão envolvidos neste esquema sangrento e purulento, incluindo Giulio Andreotti (1919 – 2013), uma figura que personificava a simbiose entre o Estado, a Máfia e a Igreja (ver filme Il Divo [2008], de Paolo Sorrentino [1970]). A impunidade, porém, era o preço da aliança. Sindona morreu na prisão, envenenado com cianureto. Calvi foi encontrado pendurado em Londres. Apenas Marcinkus teve uma sorte diferente de seus sócios e foi mantido a salvo: após se aposentar como um simples pároco no Arizona, morreu em 2006, aos 84 anos, em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas pela polícia de Phoenix. Todos que sabiam demais sobre o cofre de São Pedro tiveram mortes misteriosas.

Bento XVI: o Papa do “Legado Marcinkus”

Quando Joseph Ratzinger (1927 – 2022) foi eleito Papa Bento XVI (2005 – 2013), o sistema de Marcinkus ainda pulsava nas artérias financeiras da Igreja. O escândalo “Vatileaks”, deflagrado quando seu mordomo Paolo Gabriele (1966 – 2020) vazou documentos de sua mesa, revelou que o “Papa Docente”, o teólogo que queria restaurar a fé a partir do coração da Europa de fala germânica, também participava do jogo sem escrúpulos para financiar seus próprios projetos, como a difusão de suas obras e o patrocínio de estudantes por ele escolhidos num sistema opaco. Dois Papas, dois objetivos, um só IOR.

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Diferentes documentos, conforme detalhado a seguir, detonam a figura de pureza de Bento XVI e podem ser encontrados na Sala de Leitura Eletrônica da Lei de Liberdade de Informação da CIA (FOIA CIA, na sigla em inglês) e no site do Vatileaks:

  • O “Tributo” do IOR: em 24 de abril de 2006, o então presidente do IOR, Angelo Caloia (1939), enviou a Bento XVI um cheque pessoal de 50 mil euros como um “modesto sinal de ajuda”. Não era uma doação institucional, mas um pagamento direto do chefe do banco ao seu novo soberano, a fim, quem sabe, de colocar óleo na máquina para continuar operando como bem entendesse. Afinal de contas, Marcinkus havia deixado vários informes de empresas “offshore” de propriedades cruzadas, difíceis de rastrear, mas que batem, até os dias de hoje, na ponta do IOR, que, por sua vez, pertence ao Vaticano.
  • O Caixa Paralelo: um relatório de 2006, encontrado na mesa do Papa, listava depósitos no IOR que incluíam 41.680 euros em dinheiro vivo, além de 6.625 cheques e valores em dólares. Um prelado da “Opus Dei” depositava regularmente 5 mil euros em espécie, um fluxo constante e irrastreável.
  • O Preço do Acesso: as audiências papais rendiam entre 15 mil e 40 mil euros. O famoso jornalista italiano Bruno Vespa (1944) chegou a oferecer 10 mil euros por uma entrevista exclusiva. O acesso ao Vigário de Cristo tinha uma tabela de preços.


Tudo isso revelado, como Bento XVI se manteria no pináculo do poder religioso do Ocidente, sem ter, ele próprio, sujado as mãos ao aceitar essas quantias do IOR sem protestar ou impedir que sua “Santa” presença fosse paga por um dos mais histriônicos jornalistas do famoso programa italiano matinal
“Porta a Porta”, exibido pela Radiotelevisione Italiana (RAI)?

Por outro lado, qual católico, por mais obtuso e fundamentalista que seja, poderia negar que não foram apenas terços marianos rezados aos pés da Virgem que derrubaram o regime comunista na Polônia, mas fluxos massivos de dólares do IOR, ao custo da vida de uma jovem de 15 anos?

O pastor Malafaia e o Papa Francisco: duas justiças em uma República em crise

Este texto de pesquisa jornalística não é um ataque ao catolicismo. Ele serve para que todos os que professam esta fé possam ajudar a melhorá-la e reconstruí-la em favor dos pobres e da verdade que ela mesma professa, para que pedófilos e homens interessados em dinheiro não se escondam em suas fileiras, e, principalmente, para que nenhuma menina ou menino, na flor da idade, tenha que pagar com sangue por uma típica vendeta italiana entre a Igreja Católica e Máfias (seja de que coloração for)!

Este texto segue In Memoriam:

Emanuela Orlandi (1968 …)

Nota

Este texto, além de ter utilizado inúmeras outras fontes, foi composto por pesquisas no website da CIA pelo sistema de desclassificação obrigatório de 15 anos do Governo Norte-Americano pelo acrônimo da lei FOIA: Lei de Liberdade de Informação (Freedom of Information Act – FOIA). A atualização mais recente da FOIA foi feita em 2016, e foi assinada pelo Presidente Barack Obama (2009-2017). Para saber mais, clique aqui.

Bibliografia

  1. NUZZI, Gianluigi. Vaticano S.p.A.: Da un archivio segreto la verità sugli scandali finanziari e politici della Chiesa. Milano: Chiarelettere, 2009.
  2. WILLAN, Philip. The Last Supper: The Mafia, the Masons and the Killing of Roberto Calvi. London: Robinson, 2007.
  3. YALLOP, David A. In God’s Name: An Investigation into the Murder of Pope John Paul I. New York: Bantam Books, 1984.
  4. RICCARDI, Andrea. São João Paulo II: A Biografia. São Paulo: Paulus, 2021.
  5. CORNWELL, John. A face oculta do pontificado de João Paulo II. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

Obra Fílmica

IL DIVO. Direção: Paolo Sorrentino. Produção: Nicola Giuliano, Francesca Cima e Andrea Occhipinti. Itália/França: Indigo Film; Lucky Red; Parco Film, 2008. 1 filme (110 min.), son., color. Legendado.

Edição: Guilherme Ribeiro

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