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Praça do Libertador: o histórico espaço em Lima deturpado pelo Congresso do Peru

Recentemente, e por iniciativa de um quase anônimo parlamentar da cidade de Ica, integrante de uma das famílias mais poderosas do sul do Peru afetadas pela reforma agrária, o Congresso da República aprovou uma lei mudando o nome da Praça do Libertador – ou como é originalmente denominada, Praça Bolívar.

De acordo com a vontade do legislador, o referido lugar histórico, situado diante do edifício do Poder Legislativo, passará agora a se chamar “Praça da Constituição”. Como bem ironiza Luis Varese, seria necessário esclarecer a qual Constituição se refere, já que tivemos 13 ao longo da história do Peru republicano, e a mais recente – imposta por Alberto Fujimori, em 1993 – foi modificada tantas vezes que já não se sabe qual era sua versão original.

Talvez os assessores do congressista em questão tenham feito alusão à primeira Carta Magna, a de 1822, em cuja honra a praça recebeu esse nome, quando então se chamava Praça da Universidade, por estar ali localizada a Universidade de San Marcos. Mas essa decisão foi tão efêmera quanto a própria Constituição daquela época. Em 1825, a praça mudou de nome.

A decisão parlamentar referente à mudança atual foi aprovada quase às escondidas, no final da noite, sem espaço para um debate público, e sem que se consultasse a opinião de ninguém – muito menos de historiadores e acadêmicos, conhecedores das raízes do nosso Estado.

E mais: essa mudança foi escondida por trás de uma outra votação que teria atraído muito mais atenção da opinião pública – aquela que “anistiava” todos os crimes cometidos por membros das Forças Armadas e das Forças Policiais nos chamados “anos da violência”.

Essa medida certamente despertaria maior interesse público, pois envolve casos gravíssimos, alguns dos quais ainda estão pendentes no sistema judiciário. Encobrir essa deliberação com o debate sobre a mudança de nome de uma praça poderia parecer um assunto menor. E talvez por isso, passou quase despercebido pela maioria dos peruanos.

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Mas é importante destacar que essa mudança de nome constitui, nos termos da psicanálise, um ato falho: uma ação inconsciente que, nas palavras de Freud, busca esconder algo ou disfarçar uma intenção que se tenta manter oculta para que passe despercebida. E sim, claro: se esse foi o propósito do congressista em questão, então tudo foi friamente calculado.

Mas a verdade não pode ser escondida por muito tempo, e logo veio à tona. A medida revelou-se um absurdo de grandes proporções e uma verdadeira afronta à peruanidade – quando não à própria história do país. Isso porque a Praça Bolívar está profundamente enraizada na história do Peru.

Na verdade, a origem da praça remonta ao século 16, aos tempos da Colônia. Naquele local funcionava a sede de uma instituição que traz memórias agradáveis a alguns congressistas dos tempos atuais: o Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido como a Inquisição. Mas, com a República, o espaço adquiriu outro significado.

Em 1822, foi chamada de Praça da Constituição, pois ali funcionou a Primeira Assembleia Constituinte, que teve, de fato, uma vida breve. Pouco tempo depois, passou a se chamar Praça Bolívar – nome que deveria conservar per sécula seculorum.

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Desde 1825, o nome dessa histórica praça esteve vinculado ao do Libertador, embora o monumento ali erguido date apenas de 1859, durante o governo de Ramón Castilla, um dos mais ilustres mandatários do século 19.

Como se recorda, Bolívar chegou ao Peru em 1º de setembro de 1823, chamado com urgência pelo Congresso do país para exercer as funções de Libertador. Naquele momento, o Peru vivia uma fase crítica de sua história. Após a entrevista de Guayaquil, realizada em julho de 1822, José de San Martín optara por deixar o país, que então perdeu a pouca estabilidade conquistada após a declaração da independência.

A oligarquia hispanista, que se tornara republicana da noite para o dia, em 28 de julho de 1821, retomou perigosamente a iniciativa, tentando se posicionar no comando do nascente Estado, incentivando uma reaproximação com a Coroa Ibérica. Essa ofensiva se manifestou de várias formas.

Houve uma crescente campanha de ódio contra Bernardo de Monteagudo, o corajoso e radical argentino que viera com San Martín e retornou ao Peru com Bolívar para consolidar a independência. Houve também ataques traiçoeiros contra Bolívar, acusado de “ditador” por ter acumulado poderes com o objetivo de conduzir a campanha final da independência.

Parte dessa visão está expressa na famosa quadra atribuída a José Joaquín Larriva:

Quando da Espanha as amarras em Ayacucho rompemos, nada mais fizemos senão trocar ranho por baba. Nossas províncias escravas ficaram de outra nação. Mudamos de condição, apenas passando do poder de Dom Fernando ao poder de Dom Simón.

Como se recorda, em janeiro de 1824, os “realistas” – que jamais se consideraram derrotados – ameaçaram novamente o poder central em Lima, obrigando Bolívar a transferir sua sede de governo para o norte do país, estabelecendo-se em Trujillo. De lá, organizou espaços e posições de caráter soberano.

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Depois viriam as gloriosas jornadas de Junín e Ayacucho. Sem elas, a independência não teria sido assegurada. Foi nelas que o gênio de Bolívar e de Antonio José de Sucre selou, de forma definitiva, o destino da América. Mas nem assim se apagou a campanha pró-hispanista que a oligarquia crioula sempre alimentou, e que se expressou numa ofensiva vulgar de difamações contra o Libertador.

Como se vê, essa atitude persiste até hoje, manifestando-se na mais medíocre mesquinharia do atual Congresso peruano, que busca apagar o nome de Bolívar da praça principal do Legislativo.

Em Madri, esses episódios também são lembrados com certa nostalgia. Ali surgiu uma entidade fascista chamada VOX, cuja principal aspiração é “reconstruir a ibero-hispanidade” – uma espécie de vice-reinado mental que tenta se impor com a cumplicidade daqueles que ainda sentem saudades do domínio da Coroa.

O VOX acaba de realizar seu 4º Encontro em Assunção, capital do Paraguai, de onde fez votos para que o “mundo ibérico” avance novamente nestas terras da América, com o claro objetivo de apagar o legado de Bolívar.

Logo vão querer que a Avenida 9 de Dezembro volte a se chamar “Paseo Colón” e que a Praça San Martín passe a ser chamada, doravante, de Praça Fernando VII.

Desse modo, o prefeito de Lima poderá circular confortavelmente em sua carruagem pelas rotas vice-reinais da capital.

Em contrapartida, para nós, peruanos, a Praça Bolívar continuará levando esse nome e honrando sua condição de Praça do Libertador.

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