O contraste entre o Nobel concedido a líderes como Esquivel e Mandela e, agora, Corina Machado, é abismal, e revela a verdadeira fase do humanismo liberal: aquele que ama a paz, desde que ela não ame os pobres
A concessão do Prêmio Nobel da Paz a Corina Machado constitui um dos episódios mais constrangedores da história recente da diplomacia simbólica internacional. Ao laurear uma figura cuja atuação política se fundamenta na hostilidade e na defesa de sanções contra seu próprio país, o comitê do Nobel confirma sua metamorfose em instrumento de propaganda moral do Ocidente. O fato revela um sintoma muito emblemático: o prêmio, que um dia distinguiu os construtores da justiça e da reconciliação, hoje celebra os porta-vozes da ordem liberal.
A trajetória de Machado não demonstra qualquer compromisso com a paz. Pelo contrário: encarna o disciplinamento social imposto pelo capital. Suas campanhas em favor das sanções econômicas — apresentadas como mecanismos de “transição democrática” — configuram a forma mais brutal de violência estrutural. Conforme disse o Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel, em 2013: “A paz não é ausência de guerra, é presença de justiça, de fraternidade, de solidariedade entre os povos.” Por isso, premiar uma postura que legitima a punição coletiva de um povo é inverter a bússola ética do prêmio — que, pelo menos em tese, era símbolo de reparação e esperança —, tornando-o selo de cinismo.
O contraste histórico é abismal. Nobel da Paz em 1980, Esquivel demonstrava trajetória de luta contra as ditaduras latino-americanas, em nome da dignidade humana, não de interesses econômicos estrangeiros. Arriscou a própria vida, sofreu tortura e prisão, mas jamais defendeu o colapso de seu país, a Argentina, como estratégia de libertação. Ao contrário de Machado, sua voz nasceu da resistência solidária, não do ressentimento político. Podemos recordar, também, Madre Teresa de Calcutá, que recebeu o prêmio em 1979 e cuja entrega silenciosa aos pobres fez da compaixão uma prática cotidiana — sem qualquer indício de autopromoção política. Em ambos os casos, o Nobel reconheceu existências devotadas à restauração do humano, não à destruição institucional de governos incômodos ao Ocidente.
Também Martin Luther King Jr., laureado em 1964, além de Rigoberta Menchú e Nelson Mandela, em 1993 e 1992, respectivamente, representaram — cada um à sua maneira — a radicalidade ética da paz como enfrentamento à injustiça. Luther King fez da desobediência civil uma pedagogia do amor político; Menchú transformou a memória indígena em trincheira contra o apagamento histórico; Mandela converteu o cárcere em semente de reconciliação. Cada uma dessas pessoas compreendeu que a paz nasce da coragem de confrontar o poder e não de se acomodar a ele. Suas trajetórias provam que a paz é uma conquista; não harmonia imposta, e sim rebeldia transformada em justiça. A partir dos exemplos dessas pessoas, a paz se encarna como verbo coletivo, como prática insurgente de libertação humana.
Corina Machado, porém, nada edifica — apenas repete. Sua retórica de “liberdade” ecoa o discurso disciplinador das elites que instrumentalizam a democracia como escudo ideológico para a manutenção de seus privilégios. Seu projeto político nasce das conveniências de uma classe que teme perder o monopólio da narrativa. Sua fala disfarçada de bravura cívica serve antes para reafirmar a lógica colonial que converte o sofrimento popular em espetáculo moral. Ao invocar a “libertação” de seu país, Machado não questiona as estruturas globais que produzem a miséria — antes, as reproduz, ao defender as sanções e a intervenção externa como remédios legítimos. Sua liberdade, portanto, é a liberdade do mercado; sua paz, a paz dos vencedores; e seu gesto político, uma repetição refinada da velha pedagogia da submissão, que confunde soberania com docilidade e democracia com obediência ao Norte Global.
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Ao laurear Machado, o comitê do Nobel reafirma o que Aníbal Quijano denominou colonialidade do poder: o monopólio epistemológico e moral do Norte Global sobre o significado da virtude. A paz, assim, é definida pelos que dominam, uma paz que deslegitima as insurgências, criminaliza as resistências e canoniza os obedientes. Corina Machado se encaixa perfeitamente nessa gramática, já que é dissidente domesticada que denuncia governos periféricos, mas jamais questiona o império do capital financeiro ou a violência das sanções.

Enquanto Pérez Esquivel carregava a cruz dos desaparecidos e Mandela saía da prisão com a promessa de não reproduzir o ódio, Machado se ergue sobre os escombros de uma crise que ajudou a aprofundar. Enquanto Madre Teresa alimentava corpos famintos, Machado os expõe como retórica de denúncia seletiva. O contraste é gritante. O que antes era compromisso com o humano, hoje, ao que tudo indica, é compromisso com o capital.
A decisão de laurear Machado denuncia a política do próprio Nobel. Ao premiá-la, o comitê reafirma sua função de campo de legitimação do discurso liberal, transformando o prêmio em dispositivo de dominação cultural, ideológica, política e também econômica. E, no que se refere à paz, torna-se uma mercadoria discursiva, distribuída segundo o mapa dos aliados e inimigos do Ocidente.
Ao abordar as epistemologias do Sul, Catherine Walsh recorda que o desafio é pensar e sentir o mundo a partir de outras gramáticas da vida. A paz, sob essa perspectiva, é uma construção coletiva que emerge das margens. A escolha de Machado, ao contrário, reafirma a exclusão dessas margens e a permanência do olhar eurocentrado que define quem é digno de ser ouvido.
Nobel: de instrumento de emancipação a mecanismo de controle simbólico
Ao invocar o nome de Corina Machado, o Nobel da Paz, portanto, não homenageia a coragem; não exalta o humanismo; não constrói pontes para um futuro mais justo. Ao contrário, celebra a conveniência política, premia uma narrativa que beneficia interesses externos em detrimento da população venezuelana. Enquanto o prêmio se orgulha de sua suposta neutralidade, a América Latina continua padecendo a violência da desigualdade global, das sanções econômicas e das ingerências geopolíticas que corroem os tecidos sociais. O gesto de laurear Machado revela, de forma explícita, que a Europa distribui prêmios enquanto dita quem merece o estatuto de vítima e quem será condenado como tirano, transformando a dor e a resistência dos povos em moeda de legitimidade internacional.
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Mais do que ignorar a complexidade histórica e social da região, o prêmio instrumentaliza a narrativa de “libertação” como espetáculo moral, convertendo a paz em uma espécie de “selo de obediência” e a justiça em propaganda. Essa indicação transforma a dor real de milhões de pessoas em enredo cuidadosamente selecionado, que escolhe quais sofrimentos merecem atenção e quais devem permanecer invisíveis. Ao invés de reconhecer iniciativas que enfrentam estruturalmente a opressão, legitima ações que reforçam hierarquias existentes e reproduzem a dependência do Sul Global em relação às potências centrais. A retórica da liberdade é usada como cortina de fumaça para obscurecer a violência econômica e política que sustenta o sistema global.
O prêmio, assim, deixa de ser um instrumento de emancipação para se tornar um mecanismo de controle simbólico que sanciona comportamentos por conveniência, que despreza vozes dissidentes autênticas e transforma a moral em mercadoria. Como lembrava Frantz Fanon, colonizado é aquele que pergunta ao opressor o que é humano, e o opressor responde com o silêncio das bombas.
Ao premiar Corina Machado, o Nobel responde com o silêncio das sanções. Nesse gesto, revela a verdadeira face do humanismo liberal, qual seja, aquele que ama a paz, desde que ela não ame os pobres. É um humanismo que se emociona diante de discursos retóricos e gestos performativos, mas fecha os olhos diante da fome, da escassez e da violência estrutural que afetam milhões de vidas. É a paz dos poderosos, a paz que não questiona a ordem econômica nem desafia o privilégio de quem dita regras globais.
* Imagens na capa:
– Adolfo Pérez Esquivel: Silvina Frydlewsky – Ministério da Cultura da Argentina / Flickr
– María Corina Machado: Reprodução / Facebook

