Marco Antonio Hernández Guevara não deveria ter morrido. O lavrador, como tantos outros, veio aos EUA para trabalhar nos campos da Flórida e sustentar sua esposa e três filhas no México. No fim de agosto, retornou ao seu país para seu próprio funeral e, embora a causa da morte tenha sido tecnicamente insolação, a razão de fundo foi a ausência de proteções e normas para os trabalhadores agrícolas.
Essas normas existem e salvam vidas todos os dias para os que trabalham sob o Programa de Comida Justa, que estabelece proteções e normas trabalhistas para milhares de diaristas, impulsionado pela Coalizão de Trabalhadores de Immokalee. O programa transformou as condições de trabalho nos campos agrícolas em cerca de 13 estados dos EUA e hoje é um modelo que está sendo adotado em outras partes dos Estados Unidos, bem como em diversos outros países (do Chile à África do Sul).
A fazenda onde Hernández Guevara trabalhava, porém, não fazia parte da iniciativa. Há algumas semanas, chegou a notícia de que um diarista da região de Immokalee havia sido levado a um hospital na cidade vizinha de Naples, onde se encontrava em coma. Sua esposa conseguiu vir do México graças ao apoio eficaz do cônsul de proteção, José Manuel Murillo Valencia, do consulado do México em Miami, para estar ao seu lado em suas últimas horas, na esperança de um milagre que não veio.

Tudo isso ocorreu em um contexto no qual os trabalhadores enfrentam uma onda antimigrante oficial, que também alimenta um clima hostil por todo o país, com as autoridades priorizando batidas, bloqueios e a construção de centros de detenção, incluindo a chamada “Alcatraz dos crocodilos”, não muito longe dos campos da região de Immokalee.
Assim, os trabalhadores estão em situações cada vez mais vulneráveis e, nos campos onde não existem proteções nem um programa como o Comida Justa, cada vez menos se atrevem a apresentar queixas sobre suas condições de trabalho.
No caso de Hernández Guevara, de 35 anos, natural de San Luis Potosí, não se tratava de um trabalhador indocumentado, mas de alguém que chegou seguindo todas as regras. Ele já havia completado um contrato como trabalhador hóspede (conhecido como visto H-2A) em maio e retornou à Flórida em agosto com um segundo contrato — tudo para realizar o trabalho essencial de colher alimentos para os estadunidenses e enviar recursos para sustentar sua família e seu país.
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Lucas Benítez, um dos cofundadores da Coalizão de Trabalhadores de Immokalee, afirma em entrevista ao jornal La Jornada que esse caso destaca algo muito comum. A morte, em si, não foi resultado de uma questão política ou de um problema de governo, mas “de um problema sistêmico que a indústria agrícola enfrenta de forma geral, especialmente as empresas que se beneficiam do trabalho das pessoas do campo — supermercados, grandes redes de restaurantes e produtoras — que se recusam a fazer parte dos acordos do Programa de Comida Justa”.
Benítez enfatiza que o caso de Hernández Guevara serve de exemplo porque, no rancho onde ocorreu essa perda humana, não existe o Programa de Comida Justa: “Nos campos que participam do programa, até hoje não tivemos um único registro de um caso como esse, de insolação”.
“Isso porque esses trabalhadores estão protegidos: recebem pausas a cada duas horas, toda a maquinaria é desligada e os trabalhadores vão para a sombra, onde tomam água com eletrólitos”, acrescenta.
O adoecimento de um trabalhador rural por insolação não é incomum. Na verdade, com as mudanças climáticas, as condições de calor vêm piorando a cada ano. Pesquisas recentes, baseadas em estatísticas federais, revelam que os diaristas do campo têm 35 vezes mais chances de morrer por calor do que trabalhadores de outros setores.
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O Departamento do Trabalho dos Estados Unidos estima que mais de 33.890 trabalhadores sofreram doenças relacionadas ao calor entre 2011 e 2022, com quase mil mortes registradas. Mas hoje não existem estatísticas precisas sobre o tema, e muitos desses casos sequer são reportados.
Com a chegada do governo de Donald Trump, especialistas e trabalhadores previram que as condições de trabalho para diaristas e trabalhadores da construção civil piorariam como resultado da rejeição oficial a regulamentações relacionadas às mudanças climáticas, assim como da ofensiva contra regulamentações de todo tipo — inclusive as trabalhistas.
Por isso, o Programa de Comida Justa estabelece normas consideradas como direitos dentro dos acordos entre trabalhadores, produtores rurais e grandes cadeias de restaurantes e supermercados que compram seus produtos — uma iniciativa lançada em 2010. O programa transformou, pela primeira vez, as condições de trabalho de milhares de diaristas, incluindo o direito à proteção contra o calor, a prevenção de assédio laboral e sexual, o processamento de denúncias e a elevação da renda dos trabalhadores.
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