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Frente às sanções dos EUA, cultura na Venezuela renasce com fomento à expressão popular

O bloqueio imposto pelos EUA, que dificulta a produção e a circulação de bens, poderia supor um apagão cultural na Venezuela; o que se viu, no entanto, foi uma reconfiguração

Quando se pensa nas sanções aplicadas à Venezuela pelos Estados Unidos, normalmente as imagens que vêm à mente são de cifras macroeconômicas, inflação, indústria petrolífera, preços dos alimentos, problemas nos sistemas de saúde ou educação. No entanto, os efeitos da “queda de braço”, como Barack Obama batizou a política externa dos Estados Unidos, podem ser percebidos em outras áreas sensíveis, como a cultura e as artes.

O campo artístico venezuelano foi limitado pelo cerco econômico que dificulta importações, bloqueia transações e restringe intercâmbios internacionais. Esse panorama alterou tanto a produção quanto a circulação de bens culturais. Desde a escassez de instrumentos musicais, papel, livros, tecnologias de áudio e vídeo, até o virtual desaparecimento da Venezuela do mapa de turnês de alguns artistas internacionais, as consequências são múltiplas e tangíveis.

Reconfiguração da indústria

O escritor e jornalista Marlon Zambrano ofereceu, em conversa com o La Jornada, uma leitura que ressalta a complexidade da situação: “Creio que foi um bumerangue. Ao final, as dificuldades que o bloqueio implicou foram e continuam sendo mais de ordem material. Limitou, como tudo, o acesso a bens, serviços e ao consumo do produto cultural manufaturado pela indústria transnacional.” De fato, a importação de instrumentos, por exemplo, decaiu, e o acesso a produtos importados (filmes, livros) foi bastante restringido. Da mesma forma, na área do entretenimento, diminuíram significativamente as apresentações de artistas e os eventos internacionais no país.

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No entanto, a consequência não foi um apagão cultural, mas uma reconfiguração. Diante da impossibilidade de depender de bens culturais importados, emergiram respostas locais voltadas para a produção interna. O Estado venezuelano respondeu estrategicamente com políticas voltadas a reforçar a identidade cultural e dinamizar as expressões populares.

Uma das principais iniciativas foi a criação da Grande Missão Viva Venezuela, Mi Patria Querida, uma plataforma institucional que articula festivais, feiras, encontros musicais e exposições artesanais em todo o território nacional. Zambrano a qualifica como “uma tática brilhante de ação política por parte do Estado venezuelano, que encontrou enorme ressonância no povo”, e destaca que essa estratégia não apenas sustentou a atividade cultural, mas a converteu em uma ferramenta de coesão simbólica.

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Essas políticas fizeram proliferar atividades culturais em diversas escalas. O especialista fez uma enumeração que revela a riqueza dessa dinâmica cultural dentro da Venezuela: “festivais de música como o Festival Mundial Viva Venezuela, feiras do livro como a Feira Internacional do Livro da Venezuela e a Feira do Livro de Caracas, além de suas edições regionais; festivais de cinema em todo o país, tanto regionais quanto nacionais; concertos de música urbana, popular, folclórica ou de raiz tradicional; e um reconhecimento sistemático e exibição de todo tipo de produções populares — desde a luteria até a arte popular, bonecas de pano, cerâmicas, artes plásticas, muralismo e muito mais.”

O efeito, segundo Zambrano, foi contundente: “A maior mudança que isso gerou foi a elevação do conhecimento de nossas tradições, a multiplicação de espaços de formação, criação e difusão.”

Uma das chaves pode ter sido a multiplicação de eventos de pequena escala, mas com maior proximidade com a comunidade, explica o analista, assim como “a abertura dos museus em todo o país aos artistas iniciantes, além de um notável esforço de recuperação das infraestruturas, a valorização do feito em casa como um valor consolidado no imaginário coletivo, e o impulso a pequenas empresas ou empreendimentos voltados a produtos culturais.”

Dentro e fora da Venezuela

A migração venezuelana, impulsionada em grande medida pelas sanções estadunidenses, também se refletiu no campo da arte, sobretudo no mainstream. Sucessos musicais como Rawayana, Elena Rose, Danny Ocean e muitos outros desenharam uma face do panorama artístico venezuelano centrada no público nacional que vive em países como Estados Unidos, Espanha, Chile, entre outros.

Zambrano oferece uma visão crítica sobre essa dinâmica externa: “A cena artística venezuelana no exterior se comporta de forma isolada e, em muitos casos, como uma plataforma propagandística contra o governo venezuelano.” Em sua perspectiva, esse enfoque minimiza os avanços culturais internos e responde a “uma poderosa indústria midiática mundial que costuma atuar como uma arma do colonialismo cultural.”

Pastores da Criança de São Miguel, durante festivel na cidade de Trujillo (Foto: Reprodução – Grande Missão Viva Venezuela, Mi Patria Querida)

Por contraste, o crítico ressalta a vitalidade do ambiente artístico nacional: “No país, há uma cena cultural impressionante, viva, que pulsa em cada esquina. Tem a marca das tradições, das raízes, do patrimônio material e imaterial, com um forte sentido de pertencimento e coesão.”

As sanções internacionais não apenas afetaram a infraestrutura cultural do país, como também obrigaram a ativar respostas simbólicas de grande intensidade. O que, a princípio, parecia uma asfixia iminente, transformou-se, em muitos casos, em um incentivo à criação, ao enraizamento e à inovação a partir do local.

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