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Frei Betto | Corpo gelado, coração aquecido: o inverno de 2025

Talvez este inverno de 2025 seja implacável, mas também generoso; devolveu-me a lembrança daquele frio que molda histórias, dá sabor às bebidas e, no fim das contas, nos obriga a rir da própria fragilidade

O frio sempre teve jeito de personagem em minha vida. Em Belo Horizonte, na infância, ele tinha nome e sobrenome. Não era apenas um ventinho tímido de fim de tarde, mas um personagem robusto, de botas pesadas, que descia das montanhas com ar de autoridade. Chegava com pompa de visitante ilustre, soprava entre montanhas, uivava entre árvores que, naquela época, dominavam a paisagem urbana. Não havia muitos prédios; o vento intrometido corria livre e solto, e fazia tremer janelas como quem anuncia seu poderio.

O inverno obedecia ao calendário e não pedia licença: entrava pela fresta de portas e janelas e se instalava, impondo noites de cobertores pesados, daqueles que mais imobilizam do que aquecem, transformando-nos, crianças, em múmias de lã, e obrigando-nos a dormir enrolados em camadas de roupas, como se fosse cebola.

Com os anos, o clima se tornou outro personagem de humor instável, quase caprichoso. A crise climática enlouqueceu os termômetros. Agora, o inverno, que já foi senhor das noites, anda indeciso, hesitante. Às vezes chega tímido, apenas um sopro gelado; outras, se confunde, ausenta-se por completo em julho e aparece em setembro ou outubro. Já houve inverno em que São Paulo parecia mais próxima do Caribe do que da Mantiqueira. De uns anos para cá, ele anda indeciso, de humor adolescente. Um dia faz calorão de suar na sombra; outro, friozinho leve só para dizer que existe e, na maioria das vezes, meio morno, preguiçoso. 

Eis que neste 2025 o inverno decidiu contrariar a tendência. A cidade cinzenta, tão acostumada à pressa e ao concreto, amanhece, de repente, entregue à neblina. Não o frio europeu dos cartões-postais, com neve cobrindo telhados. Mas um frio cru, úmido, desses que se impregnam nos ossos e transformam a cama em laje de mármore. O lençol parece molhado, o travesseiro gela a cabeça, e levantar de manhã se torna uma espécie de esporte radical, exercício de ascese. Desnudar-se para o banho é um verdadeiro ato penitencial…

Os casacos, multiplicados em camadas, já não bastam. A gente veste um, dois, três, e a umidade ainda acha atalhos, escorrega pelas mangas, se infiltra pelas costuras, castiga-nos como cilício virtual. Andamos pelas ruas abraçados a nós mesmos, pernas duras, braços encolhidos, hálito fumacento. Sentimo-nos como picolés ambulantes. O charme europeu prometido pelo frio nunca se cumpre. O que há é a rinite, espirro coletivo nos ônibus e metrôs, e a ânsia por um gole quente que mantenha a alma acesa.

Então recorremos às velhas alquimias do calor líquido. O chá, por exemplo, transforma-se em salvação cotidiana, elixir sagrado. Qualquer folha serve: camomila, hortelã, um punhado esquecido no fundo da lata. O importante é o vapor subindo, desenhando arabescos no ar, como se quisesse lembrar que ainda há como se aquecer. Mas o chá engana: esquenta a boca, aquece as mãos agarradas à xícara ou caneca, consola o estômago, mas logo se dispersa e deixa o corpo novamente entregue ao glacial desamparo.

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O café, essa preciosa rubiácea escaldante, assume a dupla função de manter-nos despertos e, quem sabe, aquecer. Só que seu calor é breve, nos dá energia, mas não agasalha. Ficamos com os olhos acesos, enquanto os dentes batem como castanholas.

Há quem recorra aos destilados, como se fossem cavaleiros de um inverno antigo. Um gole de uísque ou conhaque acende uma chama imediata, ilusão térmica que percorre a garganta sem aquecer a pele. A cachaça, irmã brasileira, também se apresenta com bravura — e até os vinhos ganham contornos de lareira portátil. Mas todos carregam a mesma promessa enganosa, pois aquecem o paladar sem jamais agasalhar o corpo. São como brasas ilusórias, iluminam e logo se apagam, deixando apenas a memória e, às vezes, uma ressaca.

Ainda assim, as bebidas criam rituais que nos aproximam. A chaleira fervendo no fogão é uma lareira improvisada. A garrafinha térmica, carregada pelas ruas, vira tocha particular. E os caldos com especiarias — quentão, mingaus, sopas — fazem cada gole ser também evocação de festas juninas, serões familiares, mãos que ofereciam xícaras fumegantes com o mesmo gesto que expressavam afeto.

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O frio, ainda que rigoroso, tem a virtude de agregar, criar cumplicidade, já que nos devolve a sensação de pertencimento. Aproxima desconhecidos em paradas de ônibus, convoca famílias em torno da mesa. É uma estação que, paradoxalmente, aquece vínculos humanos enquanto congela paisagens.

Talvez este inverno de 2025 seja implacável, mas também generoso. Devolveu-me a lembrança daquele frio que molda histórias, dá sabor às bebidas e, no fim das contas, nos obriga a rir da própria fragilidade. Porque sobreviver ao frio em um país que carece de calefação, mais que desafio, é arte. E como toda arte, exige tanto coragem quanto poesia.

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