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EUA são o país mais orgulhoso da própria ignorância; bloqueio a Cuba não faz sentido, diz ex-CIA

Os Estados Unidos nunca abandonaram — talvez com exceção de um breve período — o objetivo de promover uma mudança de regime em Cuba desde a Revolução. Nesse processo, acabaram criando um “Frankenstein” interno, uma força obcecada com essa meta, dentro de uma política bilateral marcada pela rigidez. Como resume o especialista e ex-oficial de inteligência Fulton Armstrong, o único que demonstrou real disposição para a mudança foi Havana, e não Washington.

Armstrong tem larga experiência na área: foi oficial de inteligência nacional para a América Latina, diretor de assuntos interamericanos no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, atuou por cerca de três anos no Departamento de Estado — em grande parte em Havana —, foi assessor do Comitê de Relações Exteriores do Senado sob o então senador John Kerry e, atualmente, é acadêmico na American University. Em entrevista ao jornal La Jornada, ele comentou a conjuntura da relação entre Estados Unidos e Cuba.

La Jornada – São mais de seis décadas da mesma política estadunidense em relação a Cuba, que não conseguiu atingir o objetivo de derrubar o governo. Por que insistem na mesma estratégia?

Fulton Armstrong – Como podemos manter a mesma política depois de quase 70 anos? Acho que somos tão orgulhosos de nossa ignorância quanto vocês [nos EUA]. Talvez sejamos até os primeiros nesse quesito. Nunca respeitamos Cuba nem a América Latina: só nos relacionamos com elites que, em muitos casos, são subordinadas, falam inglês, frequentemente são brancas. Somos o país mais orgulhoso da própria ignorância no mundo. Isso ajuda a explicar por que nossa política para Cuba não faz sentido.

Barack Obama merece crédito por tentar não apenas renovar a forma como se formula a política para Cuba, mas também por modificar os objetivos. Já não se tratava mais de promover uma mudança de regime, mas de repensar a relação, inclusive em seus propósitos. Porém, a burocracia da política externa acabou bloqueando essa transformação. E, evidentemente, a chegada de Donald Trump enterrou de vez essa tentativa.

Mas isso se deve apenas aos burocratas?

Não. Desde a invasão da Baía dos Porcos e, sobretudo, durante o governo de Ronald Reagan, os EUA ajudaram a criar entidades como a Fundação Nacional Cubano-Americana, liderada por Jorge Mas Canosa, inspirada no modelo do AIPAC (grupo de lobby sionista). Assim se construiu um Frankenstein cada vez mais poderoso. Os burocratas de Washington sempre responderam a esse poder, argumentando que não era possível mudar a política por causa da influência dos cubano-estadunidenses e seus aliados no Congresso.

Esse “monstro” passou a ditar a agenda: foi ele que acabou revertendo a mudança proposta por Obama. No governo Biden, pouco foi feito além de medidas simbólicas e, em muitos casos, cínicas — anúncios que se traduziam em nada ou em muito pouco.

O que caracteriza a atual conjuntura da relação?

Não vejo diferença entre o que faz a equipe do atual presidente e o que havia antes. Estamos retornando ao primeiro mandato de Trump porque, primeiro, Biden não fez nada, e segundo, porque essa é a política preferida da burocracia, fiel à Doutrina Monroe. Ela se baseia na crença de que os EUA têm um direito divino de impor sanções a quem não se submete. A política atual para Cuba é manter o status quo.

O financiamento continua fluindo para TV e Rádio Martí, apesar dos cortes em outras regiões. São entre 25 e 30 milhões de dólares anuais destinados a programas de mudança de regime, mesmo após a quase eliminação da USAID (A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). Alguns dizem que Washington não aplica “pressão máxima”, mas não vejo sinais de que vá reduzi-la. Não há reuniões com autoridades cubanas, nem mesmo sobre migração, que é um pilar da relação. Também não se vislumbra nada criativo para fomentar o setor privado cubano, justamente porque sabem que isso poderia estimular mudanças graduais. O que se busca é o colapso total do sistema, na expectativa de que daí surja um governo pró-democrático, pró-EUA e pró-Miami.

Nada novo, então?

O que vemos são apertos graduais: sanções adicionais, restrições de vistos, limitação de licenças para viagens acadêmicas e de ONGs. Nada muito dramático, mas pressão máxima é pressão máxima. E deixar de realizar reuniões migratórias é um mau sinal, tanto para os habitantes da ilha quanto para a comunidade cubano-estadunidense. Diante da grave crise econômica de Cuba, as sanções funcionam como fósforos: não equivalem a bombardeios, mas ainda assim podem ser incendiárias.

E quais são os planos concretos?

Ninguém sabe. Não há sequer conversas migratórias porque, em Havana, sabem que as portas estão fechadas. Existe um cenário pouco provável, mas de grande impacto, aventado ainda no governo Bush-Cheney: repatriações forçadas para provocar uma reação das forças armadas cubanas, que são frágeis. Isso poderia abrir espaço para o que em Miami chamam de “Território Cubano Liberado pela força”. É improvável, mas não impossível. E, com a retórica do Comando Sul sobre supostas ameaças chinesas e russas em Cuba, alguns “cowboys” em Washington poderiam se animar com essa ideia.

Como se formula, de fato, a política para Cuba?

Esse governo [Trump] é volúvel, carece de pensamento estratégico e não se apoia no interesse nacional. Tudo gira em torno do presidente e de seus interesses pessoais, talvez até financeiros. Não existe um processo claro de formulação de políticas. O Conselho de Segurança Nacional está desestruturado e o Departamento de Estado sequer tem um diretor para assuntos hemisféricos.

E quanto ao futuro imediato?

O cinismo de Trump e, antes, o de Biden, convence os cubanos de que os EUA não estão dispostos a mudar a relação. Cuba aceitou o desafio da normalização, mas Washington não. Havana fez concessões: permitiu acesso à internet, abriu o setor privado, libertou presos políticos e cooperou em temas como drogas e migração. Fez mais do que lhe cabia. O que mais os EUA querem? A única resposta tem sido: “desmantela-te”. Mas é preciso ter cuidado com esse desejo. O que se persegue agora não é apenas a rendição, mas a destruição total. Isso, conclui Armstrong, não serve ao interesse nacional estadunidense.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul Global – Direitos reservados.

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