A violência policial no Brasil é uma ferida aberta que atravessa décadas, governos e regimes. Podemos afirmar que é parte constitutiva da engrenagem do nosso país. As vítimas mudam de nome, mas não de cor, nem de classe social. Nas prisões, nas ruas, nas favelas, o Estado mostra um rosto armado, letal — e quase sempre impune. Pior ainda é que essa brutalidade conta, muitas vezes, com o aplauso de parte da sociedade, que enxerga na morte do outro um espetáculo de justiça. Assim, a violência se legitima sob o disfarce da ordem, transformando-se em uma espécie de pena de morte informal e institucionalizada, aplicada seletivamente contra os corpos pretos e pobres que o país insiste em considerar descartáveis. Foi isso que vimos no Rio de Janeiro, na chamada “Operação Contenção” contra o Comando Vermelho.
O Massacre do Carandiru, em 2 de outubro de 1992, marcou a história dessa violência letal contemporânea como uma das maiores violações de direitos humanos no País. Naquele dia, a Polícia Militar de São Paulo invadiu o Pavilhão 9 da Casa de Detenção e executou 111 presos, muitos deles já rendidos. O sangue escorreu pelos corredores e cimentou a certeza de que, no Brasil, o sistema penal é um mecanismo de morte para os que nascem sem direitos. A versão oficial falou em “rebelião controlada”, mas a perícia revelou o óbvio — tiros na cabeça e no pescoço, disparos à queima-roupa, execuções sumárias.
Menos de um ano depois, em 23 de julho de 1993, o horror foi repetido. Estou me referindo à Chacina da Candelária. Oito jovens — a maioria pretos e em situação de rua — dormiam nas escadarias da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, quando foram surpreendidos por tiros disparados de carros em movimento. O ataque foi executado por policiais militares, em mais um ato de “limpeza social”. O Estado exterminava, ali, os corpos que a sociedade já havia descartado.
Pedagogia da morte
Entre Carandiru e Candelária, há, certamente, uma coisa em comum: o inimigo é o mesmo. É o pobre, o preto, o encarcerado, o favelado, a pessoa em situação de rua (que na maioria das vezes são sinônimos). A forma muda — dentro ou fora das celas, nas vielas ou nas praças —, mas o discurso é idêntico. Essas ações buscam restaurar a chamada ordem. Uma ordem que, na prática, significa eliminar os indesejáveis, reafirmar quem tem o direito de existir e quem pode ser apagado em nome da “segurança”.
Podemos chamá-la de “pedagogia da morte”, ensinada e reproduzida pelo Estado, que naturaliza o extermínio como política pública, e faz da barbárie um ritual de controle social. Sob o manto da legalidade, o país perpetua uma guerra não declarada contra sua própria população marginalizada, transformando a violência institucional em instrumento de manutenção das hierarquias raciais e econômicas que estruturam o Brasil desde a Colônia.
30 anos depois, a cena se repete com requintes de modernização tecnológica — helicópteros, drones, fuzis importados, blindados. A operação policial de terça-feira (28) no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, deixou mais de 130 pessoas mortas (segundo a Defensoria Pública carioca, até o momento da publicação deste texto; a Polícia Civil contabilizou 121 corpos) — o maior número já registrado em uma ação policial no estado. As imagens que circularam mostram corpos caídos nas vielas, escolas fechadas, moradores aterrorizados. O Estado entrou como se invadisse um território inimigo, e saiu deixando rastros de sangue e de silêncio.
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O Estado, que deveria proteger, transforma-se em agente de extermínio. É o mesmo braço armado, sustentado por uma estrutura racista e classista, que normaliza a morte dos pobres e naturaliza a impunidade. Em nome da segurança, o Estado pratica o terror, e em nome da justiça, perpetua a injustiça. As balas que atravessam corpos nas periferias são expressões de um projeto político de exclusão, que escolhe quem merece viver e quem pode morrer. Essa máquina letal — alimentada por séculos de desigualdade e pela lógica colonial que ainda estrutura as relações de poder no país — é uma lógica que confunde pobreza com perigo, e que encontra, na letalidade policial, uma forma de reafirmar a ordem social pela eliminação do outro. Desse modo, o Estado se veste de “guardião da lei” ao tempo em que atua como executor de uma pena de morte não escrita, aplicada cotidianamente contra os mesmos corpos que a história sempre tentou silenciar.
Em 1992, o massacre do Carandiru foi tratado como um “excesso”. Em 1993, a chacina da Candelária foi considerada “um caso isolado”. Em 2025, o massacre no Complexo do Alemão é justificado como “guerra ao tráfico”. O léxico muda, mas o conteúdo é o mesmo, qual seja, o Estado sempre encontra uma narrativa para justificar a morte dos que já foram desumanizados. É o racismo estrutural funcionando, como sempre, como o fio que costura essas tragédias. Porque ele define quem é suspeito, quem pode ser abordado, quem será alvejado; também explica por que as operações policiais raramente acontecem em bairros ricos; e mostra ainda a indiferença de parte da sociedade, que se acostumou a ver corpos negros caídos na rua como parte da paisagem urbana.
Nesse contexto, a impunidade é o combustível que mantém o ciclo girando. Após exterminar os 111 mortos no Carandiru, nenhum agente cumpre pena. Dos assassinos da Candelária, apenas três foram condenados — e, mesmo assim, alguns recorreram em liberdade. As chacinas nas favelas seguem a mesma lógica, isto é, poucos inquéritos, e menos ainda punições. A morte de um pobre não choca o país; é apenas estatística.
Enquanto isso, o discurso da segurança pública é alimentado pelo medo e pela desinformação. O “bandido bom é bandido morto” torna-se política de Estado. As favelas são tratadas como zonas de guerra, e a Polícia age como exército de ocupação. Mas guerra contra quem? Contra brasileiros que vivem nas periferias e têm nas forças de segurança mais ameaça do que proteção.
Trocando grilhões por fuzis e senzalas por favelas
É preciso romper com essa lógica. É preciso reverter a naturalização da violência. O que está em jogo é o próprio conceito de humanidade. Cada massacre — Carandiru, Candelária, Alemão (e tantos outros na Bahia, e em tantas partes deste país) — é um lembrete de que o Brasil falhou em reconhecer a vida de todos como igualmente digna. A resposta não deve vir apenas da justiça formal, mas da sociedade que deve se recusar a esquecer. A memória é uma forma de resistência. Lembrar os nomes, os rostos, as histórias é um gesto político contra o apagamento. Porque o esquecimento é a última etapa do massacre.

Não há democracia possível enquanto o Estado continuar matando os mesmos corpos de sempre. Não há liberdade real enquanto as favelas forem territórios de exceção. Não há paz verdadeira enquanto a polícia for instrumento de medo e não de proteção. Uma nação que aceita a morte seletiva como rotina não pode se chamar democrática, porque a democracia pressupõe igualdade de direitos e o reconhecimento da humanidade de todos — e o Brasil, ao escolher quem pode morrer, nega a própria essência desse ideal.
Enquanto o morador de favela continuar se escondendo de operações, enquanto mães pretas seguirem enterrando seus filhos e enquanto a vida for precária para uns e blindada para outros, o discurso democrático não passará de retórica vazia. A verdadeira democracia exige que o Estado baixe as armas e estenda a mão, que a lei alcance também os becos e, sobretudo, que a justiça seja mais forte que o medo. Sem isso, continuaremos a viver sob uma aparência de civilização, sustentada sobre o mesmo alicerce de sangue e de silêncio que moldou a história brasileira.
O Brasil precisa decidir se continuará a conviver com suas chacinas como se fossem inevitáveis — ou se terá coragem de enfrentar seu próprio espelho. A violência policial é o reflexo mais brutal de um país que ainda não superou sua herança escravocrata; um país que ainda entende o controle social pela via da força; um país que enxerga a vida do pobre como descartável. O Estado continua operando sob a mesma lógica do pelourinho, apenas trocando os grilhões por fuzis e as senzalas por favelas sitiadas.
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Diante da sequência de massacres nas comunidades cariocas, uma pergunta não quer calar: não caberia uma intervenção federal no Rio de Janeiro, determinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assim como foi feita no Distrito Federal após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023?
Naquele episódio, o governo federal agiu com rapidez. Lula assinou um decreto de intervenção, afastou autoridades coniventes, mobilizou as forças federais e defendeu publicamente a democracia. As janelas do Congresso e do Supremo foram quebradas, o patrimônio público depredado — mas nenhuma vida foi perdida. A reação foi firme, exemplar e imediata.
Leo Lins, MC Poze: quem merece empatia e quem merece punição
Nesta terça-feira (28), no Rio, dezenas de vidas foram ceifadas. Corpos pretos tombam sob o silêncio institucional. O que foi destruição do patrimônio em Brasília, é assassinato literal no Rio de Janeiro — e, ainda assim, a resposta do Estado é tímida, protocolar, quase cúmplice. Lula afirma ter ficado “estarrecido”. E então faço outras perguntas incômodas:
Ausência de decisão é uma forma de consentimento
Por que a urgência que houve para proteger o patrimônio da República não se repete para proteger o povo da República? Por que a intervenção é possível quando se trata de pedras e cúpulas, mas não quando o que está em jogo são vidas humanas?
O Presidente Lula, que tantas vezes afirmou governar “para os que mais precisam”, enfrenta agora um teste ético e histórico. Precisa enfrentar o genocídio cotidiano das favelas, porque não basta lamentar as mortes — é preciso agir politicamente, romper com a lógica da omissão e afirmar que a vida de cada brasileiro, independentemente de sua origem, endereço, tem igual valor. Uma intervenção federal, neste caso, não significaria mais repressão, mas o fim temporário de um ciclo de barbárie, a revisão profunda das políticas de segurança e a responsabilização de governos e comandos que legitimam a matança sob o pretexto da ordem.
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Quero repetir: o contraste é gritante. Em 2023, o Estado mobilizou todos os recursos para proteger edifícios; em 2025, hesita diante de corpos. Quando a violência ameaça o poder, a resposta é imediata. Quando a violência atinge os pobres — e principalmente corpos pretos —, a resposta é silêncio? Essa assimetria revela que o país ainda não aprendeu a valorizar a vida — apenas o patrimônio.
Cabe, portanto, ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidir se sua gestão ficará marcada pela continuidade desse ciclo de indiferença ou pela coragem de enfrentar, de forma estrutural, a política de extermínio disfarçada de segurança pública. Até aqui, sua postura tem sido a de conciliação diante do inaceitável — uma tentativa de equilibrar a justiça social com os limites de um sistema que, para se manter, exige silêncios e concessões. Lula, que já foi símbolo de resistência e esperança, parece hoje hesitar diante das violências que clamam por enfrentamento político e moral.
No caso do Rio de Janeiro, essa hesitação se traduz na ausência de medidas concretas diante de uma matança institucionalizada que se repete há décadas. O governo federal, que poderia intervir para interromper a escalada de mortes, opta pela neutralidade prudente, pela diplomacia interna que evita confronto com governadores e corporações policiais. Essa inação, contudo, custa vidas — e cada vida perdida é um lembrete de que a omissão também mata.
O mesmo padrão se repete no cenário internacional. Diante do extermínio em curso na Faixa de Gaza, o Brasil, sob o comando de Lula, condenou a violência em discursos e fóruns multilaterais, mas manteve suas relações diplomáticas e comerciais com Israel praticamente intactas. O país continua importando tecnologias militares e exportando produtos, como se a economia pudesse se descolar da ética. Esse duplo movimento — denunciar a barbárie enquanto a alimenta materialmente — revela uma contradição profunda entre o discurso humanista e a prática política.
Ao não romper com Israel, o governo brasileiro envia ao mundo e ao próprio povo uma mensagem ambígua: que a defesa da vida tem limites quando colide com os interesses estratégicos e comerciais. O mesmo princípio vale, internamente, considerando o que aconteceu no Rio de Janeiro — onde o cálculo político se sobrepõe à urgência moral. Lula fala em paz, mas tolera a guerra; fala em direitos humanos, mas hesita em defendê-los quando os agressores vestem farda ou assinam contratos de exportação.
Brasil, ciclo de violência: Segurança Pública exige menos repressão e mais investimento social
Uma intervenção federal no Rio seria, portanto, mais do que um ato administrativo. Seria a prova de que o Estado brasileiro pode, enfim, escolher a vida sobre o lucro, a justiça sobre a conveniência e a coerência sobre o discurso. Seria o gesto de um Presidente disposto a enfrentar os aliados que perpetuam o ciclo de sangue e silêncio. Porque governar deveria ser, sobretudo, decidir — e a ausência de decisão, quando vidas estão em jogo, é também uma forma de consentimento.

