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CAFÉ COM VODKA | Os avanços diplomáticos da 17ª Cúpula do Brics frente aos questionamentos midiáticos

A coluna CAFÉ COM VODKA é produzida pelo Centro de Integração e Cooperação entre Rússia e América Latina no Brasil (CICRAL Brasil) em parceria com a Diálogos do Sul Global.

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Entre os dias 6 e 7 de julho, realizou-se, na cidade do Rio de Janeiro, a 17ª Cúpula do Brics, sob o tema “Fortalecendo a Cooperação do Sul Global para uma Governança mais Inclusiva e Sustentável”. Pela primeira vez, ocorreu em seu formato expandido, após a criação da categoria de países parceiros, estabelecida em Kazan sob a presidência russa em 2024. Além disso, marcou-se a integração da Indonésia como membro pleno, formalizada em janeiro de 2025, já sob a presidência brasileira.

O grande desafio para a diplomacia brasileira — que despertava desconfiança em alguns analistas — consistia em articular um conjunto de propostas capazes de consolidar o consenso entre novos e antigos integrantes do bloco. O tamanho desse desafio pode ser mensurado apenas pela amplitude das partes envolvidas: além dos cinco membros originais, estiveram presentes cinco novos membros, dez parceiros, seis convidados e seis instituições internacionais.

Na mesma proporção das expectativas, vieram as críticas veiculadas pela mídia hegemônica, que chegou a classificar a cúpula como “esvaziada e sua declaração final como “anódina. Em resposta a essas avaliações, esta coluna apresentará, em três pontos, por que tais críticas se mostram superficiais — como destacou de forma precisa o ministro Mauro Vieira — e evidenciará os avanços alcançados.

O primeiro ponto abordará a alegação de esvaziamento; o segundo tratará dos avanços efetivos expressos na declaração final; e o terceiro, por fim, destaca a contribuição da sociedade civil e o fortalecimento do multilateralismo.

Sobre esvaziamento

A Cúpula do Brics de 2025 foi marcada pela ausência de duas figuras de grande relevância para a orientação e o direcionamento estratégico do bloco: o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente chinês, Xi Jinping.

No caso russo, muitos meios de comunicação apontaram como principal motivo a condenação de Putin pelo Tribunal Penal Internacional — uma situação cuja eventual execução extrapola a alçada do Poder Executivo brasileiro e envolveria outros poderes de Estado. Além disso, assumir publicamente um discurso de defesa do multilateralismo implicaria, no contexto da presença de Putin no Rio de Janeiro, em um novo abalo à credibilidade das instituições internacionais. Ainda que o governo brasileiro tenha assumido a responsabilidade política ao convidá-lo, a participação do mandatário russo acentuaria a contradição entre o compromisso declarado com o fortalecimento das instâncias multilaterais e as tensões jurídicas que cercam sua liderança. Esse contraste evidencia uma camada mais profunda de complexidade entre discurso e prática para os países do Brics.

No caso chinês, embora Pequim não tenha divulgado justificativas oficiais, é notório que ambos os presidentes mantiveram encontros recentes de alto nível: em novembro, Xi realizou uma visita oficial ao Brasil, e, em maio, Lula esteve na China. Além disso, o país vem enfrentando calamidades ambientais de grande magnitude, como chuvas torrenciais e ondas de calor extremas, que têm demandado atenção governamental intensa.

A postura de cada governo perante a ausência não reflete uma lógica de abandono; pelo contrário, o presidente Putin não abriu mão de discursar, mesmo que de modo virtual. Além disso, a delegação russa foi liderada pelo ministro de Relações Exteriores Sergey Lavrov, a maior autoridade em política externa do país. Enquanto os chineses enviaram uma extensa delegação, liderada pelo primeiro-ministro Li Qiang, o segundo cargo de mais alto nível da China. Essa percepção de esvaziamento deriva de uma concepção política personalista ocidental que favorece a construção de uma narrativa de enfraquecimento do bloco. E essa percepção não poderia estar mais longe da verdade.

A cúpula supostamente esvaziada contou com a participação de 34 entidades, 27 países e 7 instituições multilaterais. Dentre eles: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Etiópia, Indonésia, Irã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Belarus, Bolívia, Cuba, Cazaquistão, Malásia, México, Nigéria, Tailândia, Uganda, Uzbequistão, Vietnã, Colômbia, Quênia, Turquia, Uruguai e Palestina. As instituições internacionais incluíram o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), o New Development Bank (NDB), a Organização Mundial do Comércio, a Organização das Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde e a União Africana. Todos representados por membros do mais alto nível político e diplomático. Aos meus olhos, isso definitivamente não parece um evento vazio.

Líderes globais reunidos na Cúpula dos Brics Brasil 2025, simbolizando a ampliação do bloco e o fortalecimento da cooperação entre economias emergentes. Fonte: KSA Expats

Declaração Final

Mesmo que a ideia de um suposto esvaziamento seja desconstruída, ela pode ter pouco significado se não for compreendida à luz de seu principal resultado: a Declaração Final. Antes de abordar brevemente alguns pontos do documento, é importante esclarecer ao caro leitor que, em todo processo de negociação, quanto maior o número de partes envolvidas, mais complexo se torna o caminho até a construção de um resultado comum.

Daí decorre um certo nível de ceticismo em relação à capacidade da presidência brasileira de conduzir uma articulação efetiva, sobretudo em um momento em que o bloco passa a reunir uma diversidade ainda maior de posicionamentos — muitos deles antagônicos. No caso dos Brics, esse desafio assume contornos particularmente sensíveis, uma vez que todas as decisões são baseadas no princípio do consenso. Isso significa que é indispensável haver concordância unânime entre os membros.

Para alguns observadores, essa exigência representa uma grande barreira à capacidade do grupo de tomar decisões que acompanhem o ritmo acelerado das transformações em curso na geopolítica internacional. Para outros, no entanto, esse mesmo princípio constitui justamente a força do bloco: não se trata de impor a vontade de alguns em detrimento de outros, mas de propor uma plataforma que coloque todos os participantes em condição de igualdade, no sentido mais genuíno da multipolaridade — ainda que as assimetrias persistam.

Com relação à Declaração Final, ela possui 126 itens, distribuídos em cinco eixos: Fortalecendo o Multilateralismo e Reformando a Governança Global; Promovendo a Paz, a Segurança e a Estabilidade Internacionais; Aprofundando a Cooperação Internacional em Economia, Comércio e Finanças; Combatendo a Mudança do Clima e Promovendo o Desenvolvimento Sustentável, Justo e Inclusivo; Parcerias para a Promoção do Desenvolvimento Humano, Social e Cultural. A seguir, seguem alguns recortes relevantes da declaração — embora cada eixo pudesse, por si só, ser explorado em uma coluna à parte.

Carta de Niterói: a proposta dos jornalistas do Brics para integrar a comunicação do Sul Global

O primeiro eixo delineou, desde o princípio, uma das pautas presentes nas dezesseis cúpulas anteriores: a reforma e o aprimoramento da governança global. No que tange a este aspecto, o principal ponto é assegurar a representatividade dos Países em Desenvolvimento e Mercados Emergentes (PDMEs) e dos países menos desenvolvidos (PMD) nas Nações Unidas e em outros órgãos de governança internacional. Assim como se observa nos discursos do Sul Global, essa demanda recai, sobretudo, sobre o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) e as Instituições de Bretton Woods.

Em relação ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), observa-se, em 2025, a permanência de uma alteração sutil, mas significativa. A Declaração dos Brics deste ano passou a manifestar apoio explícito ao Consenso de Ezulwini e à Declaração de Sirte, que consolidam a posição oficial da União Africana — representada na cúpula — de reivindicar dois assentos permanentes com direito de veto, além de cinco assentos rotativos destinados ao continente africano.

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Essa postura representa uma mudança em relação às declarações de 2011, 2013, 2015, 2018 e 2023, que, de forma mais direta, endossaram a possibilidade de a representação africana no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) ser atribuída especificamente à África do Sul. Contudo, com a expansão recente do bloco, outros países passaram a demandar a revisão dessa posição, por não se sentirem adequadamente representados pela África do Sul — como se observa no caso da Nigéria e do Egito: este último, na condição de membro pleno, e o primeiro, como parceiro. O apoio às candidaturas de Brasil e Índia permaneceu latente.

A reforma, na perspectiva do bloco, é fundamental, pois os países emergentes e em desenvolvimento desempenham um papel central para a estabilidade global, em um período marcado por caos sistêmico, protecionismo, ressurgimento do fascismo, desenvolvimento tecnológico e crise climática.

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O segundo eixo, denominado Promovendo a Paz, a Segurança e a Estabilidade Internacionais, expõe a posição do bloco sobre temas particularmente sensíveis no contexto geopolítico atual. Há uma preocupação unânime com a proliferação de conflitos e a escalada de tensões. Cabe destacar que, nos últimos anos, alguns membros do Brics estiveram envolvidos em contenciosos militares: é o caso da Rússia, em relação à Ucrânia; da China, em relação a Taiwan; da Índia, em relação ao Paquistão; e do Irã, em relação a Israel, entre outros exemplos. Em grande medida, todos esses episódios refletem a tensão estrutural entre atores ocidentais e não ocidentais, o que confere uma dimensão ainda mais complexa às declarações conjuntas do grupo em matéria de segurança internacional.

O bloco expressa preocupação com o crescimento dos gastos militares em detrimento do bem-estar dos povos, e conclama todos os atores internacionais a buscar soluções políticas e diplomáticas — inclusive como forma de reverter o processo de fragmentação do sistema internacional. Este tópico evidencia um dos principais desafios de negociação de toda a Declaração Final. Entre os pontos abordados, constam: a condenação dos ataques dos Estados Unidos e Israel contra o Irã; a defesa da solução de dois Estados para o conflito entre Israel e Palestina; o apelo por um cessar-fogo imediato no Líbano; a reafirmação da soberania da Síria; a atenção à crise humanitária no Haiti; a condenação dos ataques terroristas ocorridos na Caxemira, em Bryansk, Kursk e Voronezh, atribuídos à Ucrânia; e o apoio ao princípio de “soluções africanas para problemas africanos” nos conflitos que afetam o Sudão, a região dos Grandes Lagos e o Chifre da África.

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Um exemplo claro das dificuldades inerentes a essa construção de consenso pode ser observado na posição do Irã: ao mesmo tempo em que defendeu uma condenação firme aos ataques contra suas instalações nucleares, teve de aceitar a inclusão do apoio à solução de dois Estados para o conflito palestino — ainda que o país não reconheça formalmente o Estado de Israel —, resultando na discordância à parte da Declaração Final por parte do ministro das Relações Exteriores do Irã, Abbas Araghchi. Outro exemplo é a inclusão da defesa das reformas do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), que haviam sido criticadas pelo Egito e pela Etiópia, sendo que o primeiro sugeriu que a cúpula não seria o local apropriado para tal debate. No entanto, essa questão foi contornada com o já mencionado apoio ao Consenso de Ezulwini.

Brics, Bolsonaro, ONU: Tarifas de Trump ampliam longa hostilidade dos EUA ao Brasil

O terceiro eixo é dedicado à economia, ao comércio e às finanças. Nesta etapa, o bloco consolida a posição estratégica do New Development Bank (NDB) na nova arquitetura financeira global, fortalece o Arranjo Contingente de Reservas (CRA) e reafirma o compromisso com a criação de novos mecanismos de pagamentos transfronteiriços. Esse tópico representa, mais do que qualquer outro, um risco direto à hegemonia do dólar — e foi, certamente, o que motivou uma reação por parte de Washington. Como é habitual no comportamento do ex-presidente Donald Trump, essa reação mostrou-se desprovida de racionalidade econômica, movida unicamente por motivações geopolíticas e marcada por forte hostilidade, materializando-se na ameaça de impor tarifas de 10% aos países-membros do Brics e seus aliados.

O discurso mais amplo do bloco defende o multilateralismo, expresso no apoio à adesão às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) — um dos principais instrumentos de combate ao protecionismo unilateral, cuja manifestação esteve presente na cúpula. O trecho dedicado ao comércio e às finanças também abordou a economia digital e a inovação em dados.

Entre os pontos de destaque, esteve a proposta de criação de um marco comum para a governança da economia de dados, enfatizando a soberania nacional sobre dados e fluxos transfronteiriços — aspecto que, mais uma vez, gerou tensão entre os Brics e a administração Trump. Os Estados Unidos, que possuem um robusto parque tecnológico e concentram as Big Techs, reagiram de forma contundente — inclusive por meio de uma carta endereçada ao presidente Lula —, na qual anunciaram tarifas de 50% sobre todos os produtos brasileiros, em parte sob a justificativa de defender o suposto direito à liberdade de expressão de cidadãos americanos na internet brasileira. Os Brics também têm contribuído para os debates sobre a regulação da inteligência artificial, o que, certamente, não conta com a simpatia de Washington.

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O eixo também conclama por uma industrialização avançada (Indústria 4.0), que se tornou um tema central e transversal na agenda econômica do bloco. Essa prioridade está articulada ao fortalecimento do Centro para Competências Industriais do Brics (BCIC). Além da industrialização, o Brics dedica atenção especial à agricultura — atividade responsável por parcela significativa do PIB de diversos países-membros, como Brasil, Rússia, Índia e China. Os debates, contudo, não se restringem ao aspecto econômico, envolvendo também a dimensão da segurança alimentar. Nesse campo, o bloco lidera uma das pautas defendidas pelo Brasil, voltadas ao combate à fome e à pobreza extrema. Nesse sentido, o Brics apoia — como vem sendo reiterado pelo presidente Vladimir Putin — a criação de uma Bolsa de Grãos do Brics, associada a uma plataforma de comércio comum.

Como mencionado, o combate à fome e à pobreza extrema é uma pauta que o Brasil defende de forma recorrente no cenário internacional. Inclusive, o presidente da Indonésia, Prabowo Subianto, afirmou, em reunião posterior, que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem servido de modelo para a elaboração do Programa Refeição Nutritiva Gratuita, que pretende oferecer aproximadamente 90 milhões de refeições diárias até 2026. Além da agenda de enfrentamento à fome, o Brasil também utilizou a Cúpula do Brics — assim como já havia feito no G20 — como plataforma para promover uma campanha de preparação para a COP30, que será realizada em Belém, no estado do Pará.

Poderia o Brics ser uma alternativa ao capitalismo?

O eixo dedicado às ações para enfrentar a mudança do clima e promover a sustentabilidade articulou a defesa do multilateralismo com o compromisso climático. O bloco reforçou seu apoio ao Acordo de Paris e à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC). Houve, nesse contexto, um movimento estratégico de conferir maior protagonismo aos países do Sul Global na agenda ambiental internacional. Além do apoio à realização da COP30, no Brasil, o Brics declarou seu respaldo à candidatura da Índia para sediar a COP33, em 2028. O bloco também adotou uma postura firme em relação à responsabilidade dos países desenvolvidos perante os países em desenvolvimento no que se refere ao financiamento climático.

É importante esclarecer ao leitor que a lógica dessa posição se fundamenta na ideia de que os países desenvolvidos alcançaram seu atual nível de prosperidade por meio da exploração intensiva dos próprios biomas — e de outros — durante processos históricos de colonização. Já os países em desenvolvimento não podem repetir essas mesmas estratégias para atingir o mesmo grau de desenvolvimento, razão pela qual aqueles que já alcançaram padrões adequados de riqueza e qualidade de vida têm o dever de apoiar outros países, como forma de reduzir assimetrias — em vez de simplesmente, como escreve Ha-Joon Chang, “chutar a escada” e impedir que mais nações se tornem desenvolvidas.

A Declaração, na seção de meio ambiente, também cita aspectos da transição energética — o que tensiona o discurso em torno de uma mudança para matrizes de baixa emissão de CO₂ em um grupo que ainda depende do comércio de combustíveis fósseis, como Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Rússia e outros. Portanto, mesmo reconhecendo a necessidade de uma transição, o Brics reforçou o papel fundamental que os combustíveis fósseis ainda irão desempenhar.

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Além dessa questão, há também uma posição importantíssima em relação aos minerais críticos, que tendem a assumir cada vez mais protagonismo com o acelerado desenvolvimento tecnológico. O bloco defende o uso soberano desses minerais e a necessidade de formação de uma cadeia de fornecimento que seja segura e confiável — o que posiciona o Brics como peça fundamental para as tecnologias do futuro.

O último eixo é dedicado ao desenvolvimento humano, cultural e social. Talvez este seja um dos tópicos mais relevantes para a consolidação do bloco como uma entidade geopolítica, pois é nele que se delineia a posição do grupo em relação a questões que têm tensionado as relações entre países ocidentais e não ocidentais. Um exemplo prático é a acusação recorrente de que as potências ocidentais adotam um duplo padrão na política internacional, gerando uma percepção maquiavélica de que “aos amigos, favores; aos inimigos, a lei”.

Esse tópico defende também o combate ao racismo, à xenofobia, à discriminação religiosa, bem como ao legado do colonialismo e da escravidão. Aqui se consolida uma narrativa de justiça histórica e anticolonial, que pode, em um nível mais profundo, ser relacionada ao princípio que norteia o financiamento climático — no que tange às responsabilidades históricas das grandes potências.

“Movimento audacioso”: aliança Colômbia-Brics é divisor de águas para o Sul Global

Ao longo desta coluna, destacamos como o processo de negociação no Brics é desafiador. Um dos elementos que o tornam ainda mais complexo é a necessidade de articular diferentes sensibilidades culturais em torno de pautas sociais e culturais. Uma dessas pautas é o direito das mulheres. O documento final do Brics reafirmou o compromisso com a Declaração de Pequim, que completa trinta anos, defendendo o direito e a liderança feminina em todos os setores. Essa agenda foi conduzida de forma precisa, evidenciando como a diplomacia pode contribuir para avanços sociais — em contraste com a imposição forçada que vem sendo empregada por parte das potências ocidentais. Afinal, no contexto do Brics, há países cujas restrições aos direitos das mulheres são mais opressivas do que em outros.

Além da luta anticolonial e da promoção dos direitos das mulheres, essa seção abordou temas como saúde pública e medicina — cujo ponto alto foi a proposta de uma parceria para a Eliminação de Doenças Socialmente Determinadas, apresentada in loco à Organização Mundial de Saúde (OMS), que participou da cúpula —; educação, ciência e cultura; esporte e cultura física; trabalho, juventude e emprego; urbanização e habitação; sociedade civil e intercâmbios; expansão e governança.

A Declaração Final evidencia tanto as possibilidades quanto os limites da negociação multilateral. Ainda persistem tensões latentes, mas é fundamental que o Brics seja analisado em uma perspectiva de processo histórico: seus avanços devem ser valorizados, e seus desafios, enfrentados cúpula após cúpula. O saldo para o Brasil é amplamente positivo. A descrença inicial deu lugar a um conjunto de consensos sólidos, que impulsionam o mundo na direção da multipolaridade. O país se consolidou como um importante articulador, resultando em um documento extenso, que reúne posições consensuais de grande relevância diante do atual contexto de instabilidade global.

Brics como organismo e não uma cúpula

Certamente, os críticos do Brics que alegam haver um esvaziamento do bloco, e que a cúpula não produziu avanços, demonstram uma compreensão superficial sobre o que é o Brics e como ele funciona. Como evidenciamos até aqui, essa percepção — seja fruto de falta de informação ou intencionalidade — desconsidera todo um ecossistema de iniciativas e interpreta cada movimento exclusivamente a partir do encontro de chefes de Estado.

Entretanto, é fundamental adotar uma visão mais ampla sobre o Brics e descentralizar a análise do seu desenvolvimento. Vale ressaltar que a cúpula de líderes é apenas a etapa final de um processo que envolve meses de negociações e debates, sustentados por uma complexa rede de organizações e coletividades. Para ilustrar essa dimensão, basta observar que, somente na Declaração Final, foram mencionadas 38 instituições, grupos de trabalho, parcerias, hubs e mecanismos relacionados ao Brics, cujos resultados e avanços foram apresentados no encontro realizado em julho. A seguir, apresentamos uma lista dessas entidades, extraídas do documento final, com o objetivo de oferecer ao leitor uma visão mais precisa da estrutura que sustenta o bloco.

Instituições financeiras e mecanismos de pagamento

  • New Development Bank (NDB);
  • Contingent Reserve Arrangement (CRA);
  • Brics Multilateral Guarantees (BMG);
  • Brics Payment Task Force (BPTF);
  • Brics Cross-Border Payments Initiative;
  • Brics Interbank Cooperation Mechanism (ICM).

Indústria, inovação e digital

  • Brics Partnership on the New Industrial Revolution (PartNIR);
  • Brics Center for Industrial Competences (BCIC);
  • China Centre for Brics Industrial Competences (CCBIC);
  • Brics PartNIR Innovation Center (BPIC);
  • Brics Institute of Future Networks (BIFN);
  • Brics Artificial Intelligence Development and Cooperation Center;
  • Brics Fintech Innovation Hub.
  • Brics Startup Forum;
  • Brics Startup Knowledge Hub;
  • Brics Forum on Future Networks Innovation;
  • Brics Forum on PartNIR;
  • Brics Exhibition on New Industrial Revolution;
  • Brics Industrial Innovation Contest;
  • Brics Artificial Intelligence High-Level Forum;
  • Brics Rapid Information Security Channel (BRISC).

Saúde

  • Brics R&D Vaccine Center;
  • Brics TB Research Network;
  • Brics Network of Research in Public Health Systems;
  • Brics Nuclear Medicine Working Group;
  • Brics Medical Products Regulatory Authorities initiative;
  • Partnership for the Elimination of Socially Determined Diseases.

Educação e ciência

  • Brics Network University (Brics-NU);
  • Brics Technical and Vocational Education and Training (TVET) Cooperation Alliance;
  • Brics Young Scientists Forum;
  • Brics Young Innovators Prize;
  • Brics Deep-Sea Resource International Research Center.

Agricultura e meio ambiente

  • Brics Partnership for Land Restoration;
  • Brics Environmentally Sound Technology Platform (BEST);
  • Brics Clean Rivers;
  • Brics Partnership for Urban Environmental Sustainability;
  • Brics Youth Environmental Network (proposta).

Espaço e conectividade

  • Brics Space Council;
  • Brics White Paper on Sustainable Space Connectivity Resources.

Cultura e sociedade

  • Brics Working Group on Culture;
  • Brics platform on cultural and creative industries;
  • Brics Urbanization Forum;
  • Brics Civil Council;
  • Brics People-to-People Mechanisms (ex.: Business Council, Women’s Business Alliance, Youth Council, Think Tank Council, etc.). 

Segurança e combate ao crime

  • Brics Counter-Terrorism Working Group (CTWG);
  • Brics Counter-Terrorism Strategy;
  • Brics Counter-Terrorism Action Plan.

Outros

  • Brics Customs Centers of Excellence;
  • Brics Intellectual Property (IP Brics);
  • Brics Joint Statistical Publication;
  • Brics Transport Ministers’ Meeting;
  • Brics Disaster Risk Reduction Joint Task Force;
  • Brics Working Plan on Disaster Risk Reduction.

A cúpula de 2025 também teve um outro ponto sutil — mas que pode ser visto como um grande avanço: pela primeira vez, a sociedade civil participou ativamente da cúpula, podendo apresentar propostas diretamente aos negociadores (sherpas) por meio do Conselho Civil do Brics. Isso já havia ocorrido em solo brasileiro quando pela primeira vez a sociedade civil foi incluída nos debates de política internacional por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92.

Em síntese, a 17ª Cúpula do Brics, longe de representar um evento esvaziado ou irrelevante, demonstrou a vitalidade de uma plataforma que, apesar de suas contradições internas e desafios de coordenação, consolida uma agenda própria de transformação da ordem internacional. Ao reunir uma diversidade inédita de atores estatais e instituições multilaterais, o bloco reafirmou seu compromisso com o multilateralismo, a reforma da governança global e a construção de soluções inclusivas para questões econômicas, ambientais e sociais. O processo de negociação, com todas as tensões e concessões inerentes, evidenciou que o Brics se fortalece não por unanimidades fáceis, mas pela capacidade de articular consensos mínimos entre interesses muitas vezes concorrentes. Nesse sentido, a cúpula realizada no Rio de Janeiro simboliza não apenas um marco diplomático para o Brasil, mas também um passo relevante na consolidação de um mundo cada vez mais multipolar, no qual a voz do Sul Global ocupa um espaço que já não pode ser ignorado.

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