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A América Latina e o Caribe têm um favor a devolver aos EUA

Já se retirou, nos EUA, aquele famoso convite da Estátua da Liberdade — “Dai-me os teus cansados, os teus pobres, as tuas massas amontoadas que anseiam respirar em liberdade” — que estava gravado em seu pedestal. Talvez tenha chegado o momento de girar a estátua para que olhe para o próprio país.

Muitos recordamos que, além de se proclamarem exemplo democrático e defensores mundiais da liberdade, durante décadas os estadunidenses generosamente ofereciam exportar sua democracia, suas liberdades e sua forma de governo a todo o mundo — ou pelo menos era o que diziam (bem, desde que houvesse condições, e às vezes até podiam mudar regimes em nome desse nobre objetivo).

Recordamos os programas, as bolsas e as assessorias destinados a que mexicanos e latino-americanos aprendessem como ser democráticos. Milhões foram gastos para impulsionar reformas nos sistemas eleitorais e legislativos, inclusive nas estruturas dos poderes judiciais e outros, a fim de ampliar e garantir — diziam — os direitos e liberdades dos cidadãos, bem como fazer florescer a democracia ao estilo estadunidense.

Recordamos que Washington e suas instituições — a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), o Fundo Nacional para a Democracia (NED, na sigla em inglês) e várias fundações — concediam recursos a todo tipo de organizações e centros, no México e na América Latina, que ofereciam programas de educação, capacitação eleitoral e monitoramento dos direitos humanos, além de promoverem uma curiosa nova invenção chamada “sociedade civil” e seus representantes (quase sempre não eleitos, mas isso é outro assunto): as ONGs.

Recordamos ainda que ofereciam oficinas, relatórios, livros e intercâmbios como parte de seus programas de promoção da democracia. Diversos ativistas, acadêmicos, políticos, líderes sociais e até jornalistas (o que hoje seriam chamados de “influenciadores”) foram convidados a fóruns e reuniões sobre democracia e temas afins. A Usaid convidava políticos a visitarem os EUA para ver, ao vivo, seu experimento democrático.

Recordamos jantares de gala em Washington, nos quais eram concedidos prêmios aos chamados “democratas do ano” de outras partes do mundo pela NED (cujos beneficiários insistiam que era uma entidade não governamental, embora a sobremesa fosse um bolo de chocolate decorado com uma imagem do Capitólio em chocolate branco).

Embora agora todos os chamados programas de promoção da democracia tenham sido cancelados pelo novo governo de Washington, continuam aqueles que buscam uma mudança de regime em Cuba e na Venezuela (por que será?).

Com tantas lembranças desse generosíssimo esforço estadunidense para ajudar a democratizar o México, a América Latina e o Caribe, talvez tenha chegado o momento de devolver-lhes o favor.

Agora que dizem que a democracia estadunidense vive uma crise existencial — quando especialistas, políticos e ONGs lamentam que o sistema político, em todas as suas dimensões, está desmantelado; que os direitos e liberdades civis, incluindo a liberdade de expressão, estão sob ataque; quando homens mascarados e não identificados sequestram e fazem desaparecer pessoas (os convidados daquela estátua) nas ruas; quando opositores políticos são acusados de ser “inimigos do Estado”; quando a corrupção desfila pelas mais altas esferas políticas do país; e quando alguns denunciam que os EUA estão se tornando — uma palavra antes aplicada apenas a muitos de nossos países — uma oligarquia, não seria o momento de oferecer-lhes a mão?

México e outros países do hemisfério poderiam convidar a oficinas e seminários; especialistas poderiam avaliar a condição da democracia estadunidense e oferecer propostas e recomendações; poderia ser convidada uma ampla gama de representantes políticos e sociais dos EUA para conhecerem os avanços em nossos países em matéria eleitoral, em programas de desenvolvimento, educação cívica e mais. Poder-se-ia debater se os EUA cumprem as condições para serem convidados à próxima Cúpula das Américas. Poder-se-ia criar um fundo latino-americano para a democracia nos EUA.

Talvez até se pudesse propor uma iniciativa americana para resgatar a Estátua da Liberdade.

Protestos, sátiras e livros

Infinitas expressões de dissidência nas ruas, em fóruns e praças, em bibliotecas, museus e livrarias continuam rompendo, interrompendo e sacudindo o estereótipo dos EUA e a narrativa oficial que o regime em Washington e seus aliados tentam impor por todo o país.

Todos os dias aparece, se ouve ou se sente algo que não apenas expressa repúdio e rejeição, mas também mostra sinais de inteligência neste universo (frase roubada) e se atreve a um j’accuse (palavra roubada apenas para soar pretensioso). Esse “algo milagroso” resgata este país todos os dias.

Alguns exemplos: há pessoas fantasiadas de rãs nos protestos contra a imigração e os federais em Portland, e de vacas nas mobilizações em Chicago — ambas as cidades ameaçadas pelo regime por se recusarem a se subordinar. Manifestantes com esses trajes infláveis dançam em frente aos escritórios da imigração, zombando da narrativa oficial de que essas e outras cidades são “zonas de guerra” sob controle da “ultraesquerda”.

Recentemente, bibliotecários e outros guardiões da literatura celebraram a “Semana dos Livros Proibidos”, um exercício anual de atividades para contrabalançar a proibição oficial de acesso a livros que grupos direitistas consideram inapropriados e perigosos. A Associação Americana de Bibliotecas informou, em relatório divulgado na semana passada, que foram registrados 821 tentativas de censurar 2.452 títulos diferentes durante 2024 neste país. Entre 2010 e 2019, foram incluídos livros de Toni Morrison, Aldous Huxley, John Steinbeck, Mark Twain, Isabel Allende e, claro, 1984, de George Orwell. A lista completa e mais informações podem ser verificadas aqui.

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“Aqueles que proíbem livros desejam ocultar ideias que temem. Mas, na verdade, estão tentando nos roubar a liberdade”, declarou o ator e autor George Takei, cujo livro ilustrado sobre a experiência de sua família, detida em um campo de concentração estadunidense para cidadãos de origem japonesa durante a Segunda Guerra Mundial, foi censurado. Bibliotecas públicas e universitárias, livrarias independentes e autores realizaram fóruns e eventos em todo o país contra a censura de livros, enquanto a Biblioteca Pública de Nova York ofereceu cartões gratuitos a todos os jovens do país que desejassem acessar livros censurados em suas cidades ou estados.

Há poucas semanas, Jane Fonda relançou o Comitê pela Primeira Emenda (que garante o direito à livre expressão), criado originalmente por cineastas contra o macartismo e do qual participou Henry Fonda, pai de Jane. Centenas de artistas já se juntaram à iniciativa, entre eles Mark Ruffalo, Pedro Pascal, Barbra Streisand, Billie Eilish, Spike Lee, Natalie Portman, Anne Hathaway, Anjelica Huston, Boots Riley e Ethan Hawke. A carta que anuncia a ressurreição do comitê recorda a era macartista, quando “o governo federal reprimiu e perseguiu cidadãos estadunidenses por suas crenças políticas”, incluindo políticos, acadêmicos e artistas, e lembra que essa era terminou quando estadunidenses de todos os tipos “defenderam os princípios da Constituição contra as forças repressoras”. Conclui: “Essas forças voltaram. E agora cabe a nós nos unir em defesa de nossos direitos constitucionais.”

Fonda escreveu no convite a outros artistas: “Tenho 87 anos. Vi guerra, repressão, protestos… Fui celebrada e também marcada como inimiga do Estado. Mas posso lhes dizer isto: este é o momento mais aterrador da minha vida.” Conclui dizendo que, ao olhar para a história, “a única coisa que funcionou — uma e outra vez — foi a solidariedade.” (https://www.committeeforthefirstamendment.com/)

Bailes de protesto e de sátira nas ruas, bibliotecários nas trincheiras e atores e músicos relembrando histórias de luta são parte das tentativas cotidianas de resgate desta nação.

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