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Frei Betto | Vitória das vítimas de Mariana e Brumadinho vai além da reparação financeira

Para comunidades atingidas, conquista judicial recente é judicial, social e política, após anos de mobilização; na prática, nasce uma nova cultura de governança territorial

A década marcada pelos rompimentos das barragens de Mariana, em 2015, e de Brumadinho, em 2019, deixará para sempre cicatrizes no Brasil. Consideradas os maiores desastres socioambientais da história do país, revelaram não apenas a fragilidade das estruturas de mineração, mas também a vulnerabilidade das comunidades cercadas por essas operações. Após anos de batalhas judiciais, manifestações, perícias contestadas e negociações frustradas, as vítimas alcançam agora uma vitória que simboliza não apenas reparação financeira, mas também o reconhecimento de que seus direitos foram violados.

A decisão recente garante benefícios ampliados aos atingidos e representa um marco para a Justiça brasileira ao estabelecer parâmetros mais sólidos de reparação integral. Entre os pontos centrais está a ampliação das indenizações individuais, a reavaliação dos danos morais e materiais, e a inclusão de categorias que por anos ficaram à margem do processo, como trabalhadores indiretos, agricultores familiares e comunidades tradicionais, especialmente ribeirinhas e indígenas. Para muitos, é a primeira vez que a dor padecida recebe, ao menos simbolicamente, um reconhecimento institucional legítimo.

Além das indenizações, o acordo prevê um conjunto de benefícios sociais e econômicos para as regiões atingidas. Nos municípios ao longo do Rio Doce, por exemplo, foram ampliados os investimentos em saneamento, saúde pública e recuperação de áreas degradadas. Na bacia do Paraopeba, ações semelhantes incluem programas de apoio psicológico contínuo, revitalização de áreas de preservação e projetos de fomento à economia local. Os moradores ressaltam que, embora nada seja capaz de trazer de volta vidas perdidas, casas e modos de viver, o fortalecimento da infraestrutura pública representa um legado essencial para garantir que outras comunidades não sofram abandono semelhante.

Outro avanço significativo ocorre no campo da responsabilização. Após anos de debates, perícias e questionamentos sobre a competência da Justiça brasileira, as decisões recentes impõem punições mais firmes às empresas envolvidas. No campo civil, as mineradoras enfrentam multas vultosas, obrigação de custear projetos de recuperação ambiental e restrições operacionais mais rigorosas. Em alguns casos, executivos respondem a processos na esfera penal, o que reforça uma lição: desastres dessa magnitude não podem ser tratados como meras falhas administrativas.

Ainda que as responsabilizações penais incluam entraves processuais, o avanço das investigações e o fortalecimento do Ministério Público e de órgãos de fiscalização representam mudanças importantes desde 2015. O país amadureceu em relação ao controle das atividades mineradoras, pressionando por leis mais duras e respostas mais rápidas. Entidades ambientais celebram a incorporação de critérios técnicos mais exigentes para a exploração e o encerramento das atividades de barragens, a estabilização da área e a restauração ambiental, de modo a eliminar sua função de reter rejeitos e  água, para aumentar  a segurança.

As comunidades atingidas destacam que a vitória não é apenas judicial, mas também social e política. Durante anos, moradores de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Córrego do Feijão e outras localidades se organizaram em movimentos, recorreram a tribunais internacionais, dialogaram com pesquisadores e sensibilizaram a opinião pública. A mobilização coletiva foi fundamental para evitar a repetição de tragédias e pressionar autoridades e empresas por respostas mais efetivas, inclusive pagando indenizações às famílias das vítimas.

Ato em memória das 272 vítimas da barragem da Vale em Brumadinho, na praça Saudade das Joias. Brumadinho (MG), 25/01/2024. (Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil)

A reconstrução das localidades destruídas avança lentamente. Entretanto, a criação de mecanismos de participação comunitária no processo decisório — algo raro antes das tragédias — é um exemplo para outras regiões brasileiras afetadas por grandes empreendimentos. Moradores passaram a acompanhar a execução das obras, sugerir ajustes, fiscalizar prazos e discutir prioridades. Na prática, nasce uma nova cultura de governança territorial: a população deixa de ser mera espectadora das decisões que moldam seu cotidiano e passa a opinar e interagir.

Do ponto de vista ambiental, os danos seguem profundos. A contaminação de rios, a perda de biodiversidade e os impactos sobre a pesca artesanal continuarão por décadas. Ainda assim, o fortalecimento das políticas de recuperação ambiental, aliado à pressão social por maior transparência, indica um caminho possível. Programas de monitoramento permanente da qualidade da água e da fauna aquática tornam-se, hoje, parte da rotina dos órgãos ambientais — avanço que dificilmente teria ocorrido sem a visibilidade provocada pelos desastres.

As lições deixadas por Mariana e Brumadinho, contudo, vão além das fronteiras dos municípios atingidos. Expõem a necessidade urgente de repensar o modelo de exploração mineral no país, especialmente em regiões densamente povoadas ou próximas a mananciais estratégicos. Especialistas alertam que, enquanto a mineração seguir como uma das fontes econômicas de Minas Gerais, será fundamental adotar sistemas de fiscalização independentes, transparência total nos dados de segurança e punições mais duras para quem descumprir normas.

Para as vítimas, a sensação predominante é de alívio, não por considerar a reparação concluída, mas por finalmente ver avanços concretos após anos de espera. Muitos ainda lidam com traumas profundos, perda de laços comunitários e dificuldades de adaptação às novas moradias. No entanto, a confiança de que a Justiça é capaz de responder a tragédias dessa escala, mesmo que tardiamente, abre espaço para um futuro marcado menos pela dor e mais pela reconstrução.

Os episódios de Mariana e Brumadinho são marcos dolorosos, mas emblemáticos. A vitória judicial das vítimas ecoa como um lembrete de que vidas e territórios não podem ser tratados como variáveis secundárias em nome do progresso econômico. As indenizações, punições e políticas de reparação representam passos importantes. Porém, a maior lição permanece: prevenir é sempre mais urgente e mais humano, do que remediar. E menos oneroso para as empresas que operam com irresponsabilidade e descaso.

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