A história não é teleológica, o que significa que o desenvolvimento histórico não vai a lugar algum, mas que, ao contrário, procede de algum lugar.Chris Wickham (1)
De 1993 data A História do Século 20. 1914-1991, de quem talvez tenha sido o último dos grandes intelectuais clássicos da social-democracia europeia, o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917–2012). Ali, Hobsbawm prestou especial atenção ao processo de auge e decomposição da organização internacional — interestatal, na realidade — do mercado mundial, após a Grande Guerra de 1914-1945, que levou à bancarrota a anterior organização colonial que esse mercado tivera desde meados do século 18 (2).
Nesse processo, Hobsbawm destacou particularmente a deterioração da capacidade dos Estados do último quarto do século 20 de atender ao desenvolvimento social de seus países, que haviam desfrutado de uma verdadeira idade de ouro de crescimento econômico entre as décadas de 1950 e 1970. Em um mundo que iniciava sua rápida transição para a globalização ao calor da Quarta Revolução Industrial — a da Internet, que integrava os processos de produção, distribuição e consumo em escala planetária a um ritmo sem precedentes na história do mercado mundial —, e no qual a autoridade pública tendia a reduzir suas funções a tarefas de administração, segurança e controle, parecia evidente para Hobsbawm “que o principal problema do mundo, e claro, do mundo desenvolvido, não era como multiplicar a riqueza das nações, e sim como distribuí-la em benefício de seus habitantes” (3). E a essa colocação — que não podia ser mais heterodoxa naqueles tempos — acrescentou o seguinte:
A distribuição social, e não o crescimento, é o que dominará as políticas do novo milênio. Para deter a iminente crise ecológica, é imprescindível que o mercado não se encarregue de atribuir os recursos ou, pelo menos, que se limitem de forma taxativa as atribuições do mercado. De uma maneira ou de outra, o destino da humanidade no novo milênio dependerá da restauração das autoridades públicas (4).Eric Hobsbawm
Três décadas depois, e ao término de uma sessão da 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas, que deixou evidente a gravidade das dissonâncias internas dessa organização, Luiz Inácio Lula da Silva, Presidente da República Federativa do Brasil, publicou no jornal mexicano La Jornada um artigo intitulado “A existência da fome é uma decisão política” (5). No texto, de 14 de outubro último, o operário metalúrgico de orientação social-cristã, que chegou a ocupar por três vezes a presidência de seu país, desenvolve um singular encontro com as razões do historiador britânico no cerne do que é realmente fundamental na tradição política que os vincula. Assim, diz o presidente Lula:
A fome não é uma condição natural da humanidade, nem é uma tragédia inevitável: ela é fruto de escolhas de governos e de sistemas econômicos que optaram por fechar os olhos para as desigualdades. Ou mesmo promovê-las. A mesma ordem econômica que nega a 673 milhões de pessoas o acesso à alimentação adequada permite a um seleto grupo de 3 mil bilionários deter 14,6% do PIB (Produto Interno Bruto) global.Lula
E acrescenta em seguida que,
Em 2024, as nações mais ricas ajudaram a impulsionar o maior aumento em gastos militares desde o fim da Guerra Fria, que chegaram a US$ 2,7 trilhões no ano. Mas não tiraram do papel o compromisso que elas mesmas assumiram: investir 0,7% do PIB em ações concretas para a promoção do desenvolvimento nos países mais pobres.Lula
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Não se trata, por outro lado, de uma mera prolongação de inércias no funcionamento do sistema internacional criado após a Segunda Guerra Mundial. Agora, diz o presidente Lula, “não temos apenas as tragédias da guerra e da fome se retroalimentando, mas também a urgente crise climática”, e isso exige compreender que o acordo entre as nações criado “para resolver os desafios de 1945 não dá mais conta dos problemas atuais.” Isso torna necessário “reformar os mecanismos globais de governança”, para o que é preciso
fortalecer o multilateralismo, criar fluxos de investimento que promovam o desenvolvimento sustentável e garantir que os Estados tenham capacidade de implementar políticas públicas coerentes para combater a fome e a pobreza. É fundamental incluir os pobres no orçamento público e os mais ricos no imposto de renda. Isso passa pela justiça tributária e a taxação dos super-ricos, tema que conseguimos incluir – pela primeira vez – na declaração final da cúpula do G20 em novembro de 2024, realizada sob a presidência brasileira. Uma mudança simbólica, mas histórica.Lula
Nesse mesmo sentido, acrescenta Lula, o Brasil propôs no G20
a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. A iniciativa, embora recente, já conta com 200 membros — 103 países e 97 parceiros como fundações e organizações. Não se trata só de trocar experiências, mas de mobilizar recursos e cobrar compromissos. Com a Aliança, queremos que os países tenham as capacidades necessárias para conduzir as políticas que efetivamente reduzam a desigualdade e garantam o direito à alimentação adequada. Políticas que têm resultados rápidos, como os registrados no Brasil após elevarmos o combate à fome à condição de prioridade de governo em 2023.Lula
Neste processo, diz, o Brasil conseguiu melhorar e ampliar seu “principal mecanismo de transferência de renda, que passou a atender a 20 milhões de lares, com atenção a 8,5 milhões de crianças de até seis anos.” A isso se soma o fato de terem sido ampliados “os recursos destinados à alimentação gratuita nas escolas públicas, que beneficia 40 milhões de estudantes”. E segue:
Por meio de compras públicas de alimentos, garantimos renda a famílias de pequenos agricultores e distribuímos comida gratuita e de qualidade a quem realmente precisa. Além disso, aumentamos o fornecimento gratuito de gás de cozinha e eletricidade às pessoas de menor renda, abrindo espaço no orçamento familiar para fortalecer a segurança alimentar.Lula
Ao mesmo tempo, ciente de que “nenhuma dessas políticas, porém, se sustenta sem um ambiente econômico que as impulsione” e de que, quando há emprego e renda, “a fome perde sua força”, o Brasil adotou “uma política econômica que priorizou o aumento dos salários”, levando os brasileiros “ao menor índice de desemprego já registrado” no país e ao “menor índice de desigualdade de renda familiar per capita”, completa.
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Para o presidente Lula, embora o Brasil ainda tenha muito caminho a percorrer para garantir a segurança alimentar de toda a sua população, esses “resultados confirmam que a ação do estado é capaz, sim, de vencer o flagelo da fome”. No entanto, exorta:
Tais iniciativas, contudo, dependem de mudanças concretas nas prioridades mundiais: investir em desenvolvimento, e não em guerras; privilegiar o combate à desigualdade, e não as políticas econômicas restritivas que por décadas têm provocado enorme concentração de riqueza; e encarar o desafio da mudança do clima, tendo as pessoas no centro de nossas preocupações.Lula
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Essa reflexão do presidente Lula o leva a afirmar que o Brasil, como sede da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, na cidade amazônica de Belém, “quer mostrar que o combate à mudança do clima e o combate à fome e à pobreza precisam andar juntos.” Em Belém, diz,
queremos adotar uma Declaração sobre Fome, Pobreza e Clima que reconheça os impactos profundamente desiguais das mudanças climáticas e seu papel no agravamento da fome em certas regiões do mundo.Lula
Essas mensagens, afirma, “mostram que as mudanças são urgentes, mas são possíveis. Pois a humanidade, que criou o veneno da fome contra ela mesma, também é capaz de produzir o seu antídoto.”
Sem buscá-lo nem propô-lo, o encontro entre Eric Hobsbawm e Luiz Inácio Lula da Silva em um instante de nosso tempo dá conta, assim, das relações de continuidade e ruptura na formação e no desenvolvimento das tendências de mudança na crise de transição histórica em que vivemos. Tal é o vento no mundo de que uma vez nos falava o argentino Aníbal Ponce. Dele nos vem — hoje, em nossos tempos e para eles — a precoce certeza com que José Martí soube advertir-nos em nossa América que:
Não há proa que talhe uma nuvem de ideias.
Uma ideia enérgica, erguida a tempo diante do mundo, detém, como a bandeira mística do juízo final, um esquadrão de encouraçados.
Dessas fontes procede uma parte cada vez mais importante da história que nos cabe construir. Estejamos prontos para isso.
Alto Boquete, Panamá, 17 de outubro de 2025.
Notas
(1) Europa na Idade Média. Uma nova interpretação. Crítica, Barcelona, 2017. http://www.elboomeran.com/upload/ficheros/obras/europa_en_la_edad_media.pdf
(2) Para uma melhor compreensão da visão dos problemas do socialismo no final do século 20 e início do 21, tem especial interesse seu livro Como Mudar o Mundo (Crítica, Barcelona, 2012), que alude justamente às circunstâncias de origem de muitos dos fatores que contribuíram e contribuem para a resistência ao neoliberalismo no mundo noratlântico e em sua próxima periferia americana.
(3) Hobsbawm, Eric (1993: 569), História do Século 20, Crítica, Barcelona.
(4) Hobsbawm (1993: 569-570).
(5) https://www.jornada.com.mx/noticia/2025/10/14/politica/la-existencia-del-hambre-es-una-decision-politica. O tema também foi abordado em termos convergentes pelo papa Leão XIV por ocasião do 80º aniversário da criação da FAO, em Roma. https://adn.celam.org/si-se-derrota-el-hambre-la-paz-sera-el-terreno-fertil-del-bien-comun-el-papa-leon-xiv-ante-la-fao/
(6) “Nossa América”. El Partido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. VI, 15.
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