Desde o século 19, os Estados Unidos se autoproclamam “guardiões da liberdade”, mas agem como administradores de um feudo. A América Latina, em sua leitura imperial, nunca foi mais que um quintal — um território de extração, de experimentação e de contenção. A partir da Doutrina Monroe (1823), que proclamava “a América para os americanos”, construiu-se um discurso de soberania continental que escondia o fato de que, na verdade, a América era para os estadunidenses. O expansionismo dos EUA esteve disfarçado de missão moral, enquanto destruía economias, derrubava governos e moldava elites subservientes ao seu projeto de poder. Infelizmente, esse processo continua.
Sob o pretexto de proteger o continente da influência europeia, os EUA usaram a Doutrina Monroe para afirmar uma posição de tutela sobre a América Latina, transformando a independência dos países latino-americanos em uma nova forma de dependência política e econômica. Apresentada como defesa hemisférica, a doutrina serviu como base para a expansão da hegemonia estadunidense, legitimando intervenções militares, ocupações e a imposição de governos alinhados a Washington. Assim, o que começou como um princípio de contenção europeia tornou-se um instrumento de dominação regional, moldando o continente de acordo com os interesses do império estadunidense em formação.
Soberania? Intolerável!
No século 20, os EUA reinterpretaram a Doutrina Monroe por meio do Corolário Roosevelt (1904) e da Doutrina Truman (1947), mantendo a mesma lógica imperial sob novas justificativas. O discurso de “proteção mútua” transformou-se em pretexto para intervenções políticas, econômicas e militares, nas quais a retórica da liberdade escondia a submissão dos países latino-americanos. O Corolário Roosevelt legitimou intervenções diretas em nações consideradas “incapazes”, como a República Dominicana, a Nicarágua e o Haiti, restringindo sua soberania conforme os interesses estadunidenses. Já a Doutrina Truman, no contexto da Guerra Fria, ampliou essa interferência ao plano ideológico, usando o combate ao comunismo como justificativa para apoiar golpes, ditaduras e regimes repressivos.
Foi também no século 20 que a dominação dos EUA sobre a América Latina atingiu seu auge, marcada por intervenções que fomentaram golpes, ditaduras e crises nacionais em toda a região. Um exemplo emblemático foi a queda, em 1954, de Jacobo Árbenz Guzmán, presidente democraticamente eleito da Guatemala em 1951 e que tentou implementar reformas sociais e econômicas voltadas à modernização e à redução da concentração fundiária. Sua principal iniciativa, a reforma agrária, ameaçava os interesses da United Fruit Company, poderosa corporação estadunidense, símbolo do neocolonialismo econômico. Embora não buscasse instaurar o socialismo, Árbenz defendia um capitalismo nacional autônomo, no qual a produção agrícola favorecesse o povo guatemalteco — o que bastou para que os Estados Unidos orquestrassem sua deposição.
Em 1964, os EUA apoiaram o golpe civil-militar no Brasil que depôs o então presidente João Goulart, eleito democraticamente, temendo que seu projeto de desenvolvimento soberano e reformas de base ameaçasse seus interesses. Goulart, assim como Jacobo Árbenz na Guatemala, representava a possibilidade de um capitalismo nacional independente, com mais justiça social e menos subordinação ao capital estrangeiro. Para o Tio Sam isso era intolerável, pois o nosso país, com suas riquezas e potencial de autonomia, não poderia ser um exemplo de independência no hemisfério sul, desafiando diretamente a hegemonia estadunidense.
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Em 1973, o golpe militar no Chile, com apoio dos EUA, derrubou o presidente Salvador Allende e instaurou a ditadura de Augusto Pinochet. Sob a influência dos “Chicago Boys”, economistas treinados na Universidade de Chicago, o país foi transformado em um laboratório do neoliberalismo, com privatizações massivas, abertura econômica irrestrita, destruição dos sindicatos, eliminação de direitos trabalhistas e corte nos investimentos sociais, tudo imposto através de repressão, censura e terror político, que asseguravam a contenção da resistência popular.
Nesse mesmo contexto, a América Central tornou-se o palco de muitas guerras. A Nicarágua, invadida e sabotada. El Salvador, ensanguentado por esquadrões da morte treinados pelos EUA. E o Panamá, cuja invasão revelou que o império já não precisava de disfarces — bastava a força bruta.
Após a Revolução Sandinista de 1979, que derrubou a ditadura de Anastazio Somoza na Nicarágua, os EUA, sob Ronald Reagan, financiaram e armaram os “Contras”, grupos paramilitares responsáveis por massacres e destruição, com o objetivo de sufocar a revolução e intimidar outras tentativas de emancipação na América Latina. Em El Salvador, a política estadunidense também apoiou esquadrões da morte e massacres, como o de El Mozote, em 1981, através de ajuda militar e treinamento, com a falsa retórica de “luta contra o comunismo”. No Panamá, em 1989, os EUA invadiram o país sob o pretexto de capturar o general Noriega, mas o real motivo era o controle estratégico do Canal do Panamá e a reafirmação do poder militar estadunidense, resultando em milhares de mortes civis e no retorno explícito da lógica colonial.
Máscara do domínio econômico
A década de 1980 consolidou a lógica neoliberal sob a tutela de Washington e do Fundo Monetário Internacional (FMI). A dívida externa passou a ser o novo instrumento de intervenção estadunidense na América Latina; e o Consenso de Washington, instituído em 1989, foi o novo “catequismo” da dependência. Significou um conjunto de diretrizes econômicas recomendado a países em desenvolvimento, principalmente latino-americanos, por instituições financeiras como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos EUA. Privatizações, desregulações e “austeridade”. Essa expressão “Consenso de Washington” foi cunhada pelo economista John Williamson para resumir as políticas que, segundo os organismos mencionados, promoveriam estabilidade macroeconômica, crescimento e integração ao mercado global.

No século 21, as estratégias tornaram-se mais sofisticadas — mas a essência permaneceu a mesma. Em 2002, a Venezuela de Hugo Chávez enfrentou uma tentativa de golpe apoiada pelos Estados Unidos, mas foi rapidamente desfeita pela mobilização popular. Em 2009, em Honduras, Manuel Zelaya foi deposto sob o silêncio cúmplice de Washington. Em 2019, Evo Morales foi forçado a renunciar na Bolívia, em um movimento legitimado por organismos internacionais alinhados ao Norte. Em todos os casos, o roteiro se repetiu: a desqualificação da liderança progressista, chamada de ditatorial; a guerra midiática; e, logicamente, o apoio financeiro às oposições.
A geopolítica contemporânea recoloca, portanto, a região latino-americana no mapa do interesse imperial. A ascensão da China e a criação de blocos alternativos — como o Brics — ameaçam a hegemonia estadunidense sobre o Sul Global. Diante disso, a América Latina volta a ser “objeto de desejo”. Melhor dizendo, de disputa. Washington reforça sua presença militar, moderniza bases na Colômbia e tenta isolar governos que dialogam com Pequim. Sob o pretexto de “defender a democracia”, os EUA buscam conter o avanço chinês, que a cada dia se consolida na região latino-americana em setores estratégicos como energia, tecnologia e infraestrutura.
O discurso democrático é, novamente, a máscara do domínio econômico, que se manifesta na promoção e no apoio a figuras consideradas colaboracionistas ou alinhadas com os interesses do Tio Sam, como Javier Milei na Argentina — cujo projeto econômico ultraliberal atraiu o respaldo de setores do capital internacional e do próprio governo dos EUA, em nome da “estabilidade” e do alinhamento geopolítico. Há também os líderes opositores, “lacaios” de Washington e dos outros aliados do Norte (como a União Europeia), a exemplo de Corina Machado, recentemente laureada com o Prêmio Nobel da Paz.
Ato de coragem, desafio estratégico
Como vemos, o padrão se repete ao longo dos séculos. O discurso moral serve de cobertura para estratégias de dominação. E a América Latina permanece, mais uma vez, como território de manobra no grande tabuleiro geopolítico global. Esse comportamento belicoso com a Venezuela, sob o pretexto do combate ao tráfico de drogas, não passa de falácia para justificar a verdadeira intenção, que é se apropriar da maior reserva petrolífera do mundo e, de quebra, tomar posse, também, das reservas de outras riquezas, sobre as quais já mencionei em um texto aqui mesmo, na Diálogos do Sul Global.
Verbena Córdula | Venezuela: a “joia da coroa” da América Latina e a farsa da mídia hegemônica
Na atual disputa econômica global, o controle de recursos estratégicos como o lítio e as terras raras, abundantes, presentes na Argentina, na Bolívia, no Chile e no Brasil, tornou-se crucial, com os EUA buscando conter a influência chinesa. A Amazônia, por sua vez, é vista como um ativo geopolítico, agora sob o disfarce do “imperialismo verde”. Politicamente, o imperialismo se reinventa por meio de guerras híbridas, substituindo armas tradicionais por sanções, manipulação midiática, lawfare e controle digital. Assim, a América Latina se torna novamente laboratório dessas táticas, onde golpes não necessitam mais de tanques, pois algoritmos e manchetes fabricadas cumprem o papel de manter o domínio das elites e big techs sobre a informação e o poder.
Neste cenário, portanto, a nossa América Latina precisa decidir se quer ser um continente ou uma colônia. Desde as “repúblicas de papel” do século 19 até os golpes digitais do presente, o império nunca pensou em abandonar o trono. O que ontem era o fuzil, hoje é a taxa de juros, o tribunal internacional e a plataforma digital. O império não se contenta em governar — exige ser o mediador da “verdade”, o árbitro da “democracia” e o dono das narrativas.
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Mas a história ainda pulsa. Parafraseando Eduardo Galeano, “as veias abertas da América Latina” continuam a sangrar, mas também resistem. Cada vez que um povo levanta a voz contra a dominação, reabre a possibilidade de um outro futuro. Esse futuro implica, entre outras questões, a construção de instituições inclusivas e verdadeiramente democráticas, capazes de proteger os direitos básicos e de promover oportunidades para todos. A resistência deve ser, portanto, simbólica, mas, sobretudo, prática. E imprescindível: deve ser a reafirmação de que a América Latina pode existir e se reconhecer como sujeito, e não como cenário de interesses externos.
E não nos enganemos. O império está ciente disso. Por este motivo, teme. As investidas de Trump com as absurdas taxações são um exemplo emblemático. A consciência de que a América Latina possui potencial político, econômico e cultural para autodeterminar seu caminho representa uma ameaça direta à lógica de hegemonia e da exploração histórica. Quanto mais nos organizarmos, articularmos alianças com outras potências emergentes e fortalecermos mecanismos de integração regional — como o Brics+ e fóruns Sul-Sul —, mais enfraquece a capacidade de imposição de Washington.
Dessa forma, uma resistência latino-americana coordenada passaria a ser, simultaneamente, um ato de coragem e um desafio estratégico, pois demonstraria que, mesmo diante de décadas de violência, o espírito de independência e a busca por justiça permanecem vivos. E que a nossa história ainda pode ser reescrita pelos próprios povos.
A história da América Latina é marcada por grandes resistências, mas também por traições e reveses, onde o imperialismo, tanto nas formas clássicas de intervenção militar como nas ingerências econômicas e digitais, tem sido central. No entanto, o espírito de resistência popular sempre esteve presente. O que falta, talvez, seja uma articulação mais forte, que nos permita nos unir em busca da real independência.
Hoje, o povo latino-americano tem a oportunidade de dar uma chance às verdadeiras esquerdas, aquelas que sempre estiveram ao lado do povo e que propõem alternativas ao capitalismo e ao imperialismo, sem se corromper. Não reivindico, aqui, um seguimento cego a fórmulas prontas, mas penso que podemos construir um projeto autônomo que atenda às necessidades da maioria, porque a verdadeira emancipação virá quando construirmos um projeto genuinamente nosso, livre de amarras externas.
Sejamos rebeldes! Não permitamos que a nossa América Latina seja, como disse o ex-presidente Joe Biden, o “quintal da frente” (e não mais o “quintal dos fundos”) dos EUA (que audácia!).

