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O marxismo de C. L. R. James, um dos fundadores do pan-africanismo radical

James, Cyril Lionel Robert, “C. L. R. James”, “J. R. Johnson”, “J. Mayer” (trinitário; Tunapuma/Trinidad e Tobago, 1901 – Londres/Inglaterra, 1989).

1 – Vida e práxis política 

Nascido em Trinidad, então colônia inglesa, Cyril Lionel Robert James cresceu num ambiente familiar de classe média e afeito aos livros, sendo seu pai professor e sua mãe uma leitora ávida. Estimulado pelos pais, cedo desenvolveu o gosto pela literatura, história e música, além do esporte e artes em geral – interesses que se revelariam, posteriormente, como temas importantes de seus estudos e reflexões filosóficas. Entre os nove e os dezessete anos frequentou, com bolsas de estudos, o Queen’s Royal College, em Porto de Espanha, escola de elite das mais antigas da ilha que recebia professores diretamente da Inglaterra. Aí se destacou como atleta de salto em altura e treinou críquete (modalidade em que foi reconhecido como promissor) [1].

Na década de 1920, após a conclusão de seus estudos, trabalhou como professor do ensino secundário de Inglês e História (tendo como aluno o futuro primeiro-ministro marxista Eric Williams). Por esses anos, ainda em seu país natal, escreveu dois romances: La divina pastora (1927) e Triumph (1929). Com o tempo seus interesses também se voltaram para a política, e desta aproximação inicial nasceu em 1929 a biografia do líder trabalhista de Trinidad, Arthur Cipriani, intitulado Life of captain Cipriani [A vida do capitão Cipriani]. 

Em 1932, aos 31 anos, migrou para a Inglaterra, país no qual viveu inicialmente em Lancashire – desfrutando do auxílio do amigo e campeão de críquete Learie Constantine. Nesta cidade, trabalhou como repórter esportivo para o jornal Manchester Guardian, enquanto, simultaneamente, mantinha-se articulado aos movimentos de libertação nacional das colônias britânicas no Caribe. É de 1933 a publicação do panfleto The case for West Indian self-government [O caso do autogoverno nas Índias Ocidentais], uma extensão do seu trabalho anteriormente publicado acerca de Arthur Cipriani. 

Tendo logo se mudado para Londres, deu início a estudos das obras de Marx e Engels, bem como acerca da Revolução Russa e seus principais teóricos. Em 1934, ingressou no Independent Labour Party [Partido Trabalhista Independente], atuando na comunicação interna e ajudando a formar o Marxist Group [Grupo Marxista]. No ano seguinte, com Yomo Kenyatta e Amy Ashwood-Garvey, fundou a International African Friends of Abyssinia (IAFA) [Internacional dos Amigos Africanos da Abissínia], cuja agitação política intensa provoca preocupação no fascismo italiano, em franca disputa pelo domínio da Etiópia. Em 1937 este coletivo passou a ser dirigido pelo comunista trinitário George Padmore (1903-1959) – intelectual que exerceu forte influência junto a James, de quem ele destacaria a importância na elaboração do termo “negritude” e o fato de ter inspirado os principais movimentos de libertação no continente africano. Juntos, fundam o International African Service Bureau (IASB) [Agência Internacional de Serviços Africanos], celeiro dos movimentos de independência das colônias britânicas após a II Guerra Mundial – ficando James responsável pela imprensa [2].

Em 1938, James foi convidado por James Cannon – secretário do Socialist Workers Party (SWP) [Partido Socialista dos Trabalhadores] dos Estados Unidos – para atuar como especialista da IV Internacional em questões africanas, afro-americanas e coloniais. Estabeleceu uma longa relação com Leon Trótski, com quem chegou a se encontrar em 1939, em Coyoacán (México), para conversar sobre temas como as perspectivas de uma política voltada aos negros e sua relação com o projeto revolucionário.

Por volta de 1941, junto com a marxista eslava radicada nos Estados Unidos, Raya Dunayevskaya, começou a formar a tendência Johnson-Forest, reunindo trotskistas estadunidenses [3]. Em 1947 este grupo se associou ao Workers Party (WP) [Partido dos Trabalhadores]. 

Contudo, já em 1950 James rompeu com esta tendência – e com o trotskismo. No ano seguinte, formou o Correspondence Publishing Committee [Comitê Editorial de Correspondência], que passaria a publicar um jornal operário – o Correspondence [Correspondência]. Por meio deste comitê, manteve conexões internacionais com projetos semelhantes, como o Socialisme ou Barbarie [Socialismo ou Bárbarie] da França. 

James permaneceu nos Estados Unidos até 1952, militando na clandestinidade, até ser preso por “atividades antiestadunidenses”. Saiu do país antes de ser deportado [4]. Após deixar os EUA, James manteria ainda intensa troca de correspondência com os integrantes do Correspondence, com vistas a orientá-los, principalmente depois que Raya Dunayeskaya deixou o grupo, em 1955. Destas cartas surgiram as bases teóricas que dariam origem à Ligue of Revolutionary Black Workers [Liga Revolucionária dos Trabalhadores Negros], criada nos EUA em 1969.

Em 1955, James se casou com Selma Deitch, uma militante do grupo que, junto com Maria Rosa Dalla Costa, lançou a campanha internacional a favor de estabelecer um salário para o trabalho doméstico. Em certa medida, as posições que James expressou nessa época anteciparam as da chamada New Left (o movimento Nova Esquerda), que surgiria décadas depois.

Ao longo dos anos 1950 e 1960 James esteve algumas vezes no continente africano e, em 1958, viveu no Caribe. É deste ano seu texto “Facing reality” [“Encarando a realidade”], no qual revela sua desilusão com os partidos comunistas e com o trotskismo. Durante os anos em que esteve de volta a sua terra natal, trabalhou na biografia de George Padmore, descrito por ele como o espírito orientador do African Bureau [Diretório Africano] e o pai da “emancipação africana”. Em 1963, publicou Beyond a boundary [Para além da fronteira] obra em que analisa questões vinculadas à estética e à educação vitoriana desde uma perspectiva do habitante das “índias ocidentais”.

No final dos anos 1960, a convite de socialistas e expoentes do movimento negro estadunidense, James regressou aos EUA, e ao longo da década de 1970 deu palestras e aulas em universidades como professor convidado. São deste tempo obras como Radical America (1970) e a biografia de Kwame Nkrumah (1960-1966) – Nkrumah and the Ghana Revolution [Nkrumah e a Revolução de Gana], de 1977 –, ex-presidente de Gana e um dos fundadores do Pan-Africanismo, a quem James havia conhecido ainda jovem, na época em que militava no IAFA. Nessa fase, James, se afastou da política partidária e passou a se dedicar ao trabalho de formação e conscientização política das classes populares.

Em 1974, James ajudou a promover o VI Congresso Pan-Africano, na Tanzânia; contudo, acabaria se retirando do evento, em protesto contra as restrições impostas aos delegados caribenhos (pelos respectivos governos). Dois anos depois, tentou organizar o VII Congresso, mas não teve sucesso na empreitada. Em 1981, mudou-se para o bairro de Brixton em Londres e passou a se dedicar à edição de seus livros – dentre os quais alguns não chegou a concluir. 

Cyril L. R. James faleceu em 31 de maio de 1989, na cidade de Londres, e seu corpo foi transladado para Trinidad e Tobago, para ser velado na sua Tunapuna.

2 – Contribuições ao marxismo 

Durante o tempo em que viveu nos EUA, C. L. R. James envolveu-se com coletivos marxistas e produziu intensamente. No começo dos anos 1940, iniciou colaboração com Raya Dunayevskaya (1910-1987), união que em 1941 resultaria na criação da chamada tendência Johnson-Forest – reunindo trotskistas do país. Neste ano, Raya escreveu “The Union of Soviet Socialist Republics is a capitalist society” [“A URSS é uma sociedade capitalista”] – sob o pseudônimo “Freddie James” –, artigo em que afirmava uma tese que James também desenvolveria: a negação de que na URSS havia uma sociedade socialista. No texto, ela classificava o Estado soviético como sendo um regime de “capitalismo de Estado”. 

A este, se seguiria outro importante ensaio do grupo, publicado em 1947 como prefácio do livro The invading socialist society [A invasão da sociedade socialista] [5]. Escrito em coautoria com Raya Dunayevskaya e Grace Lee, o texto esclarece que a tendência Johnson-Forest (cujo nome deriva de pseudônimos de James e Raya) era um agrupamento do movimento trotskista que se separou do Socialist Workers Party e mais tarde se associou ao Workers Party (WP) – com o qual também viria a romper, acusando sua falta de zelo revolucionário (o caribenho conta que no período em que esteve no WP houve diferenças com Max Shachtman, segundo ele um autor com “saltos empíricos e ecléticos”). No mesmo ensaio também aparecem explicitadas as divergências da Johnson-Forest com as posições de Trótski. De acordo com os líderes da tendência, era falsa a ideia trotskista de que os partidos comunistas eram “meros instrumentos” do Kremlim: ao contrário, entendiam que os partidos comunistas eram um produto orgânico do modo de produção capitalista, em uma fase histórica na qual se tornara difícil para os monopólios “controlar e dirigir o capitalismo e a classe trabalhadora”. Isso significava que a situação estava “madura para o partido revolucionário liderar os trabalhadores revoltosos”, mas os “partidos comunistas” não podiam liderá-los, pois tinham adotado a tese de que o socialismo consistia na nacionalização da propriedade privada. A tendência defendia ainda ser impossível construir o socialismo em um único país: “a Rússia deve lutar pelo domínio do mundo ou perecer” – posto que também estava sujeita “a todas as leis do mercado mundial” [6]. 

Para C. L. R. James, Joseph Stálin não teria a envergadura necessária para liderar um Estado socialista. O antistalinismo do caribenho fica mais evidente no livro – também escrito em colaboração com Raya e Lee – State capitalism and World Revolution (1950) [Capitalismo de Estado e Revolução Mundial]. Para os autores, o stalinismo seria “elitista”, apesar de “parecer uma nova doutrina revolucionária”; sendo acrítico, aquele governo da União Soviética consistiria em um “capitalismo de Estado” – uma “contrarrevolução” que se disfarçava “na terminologia marxista”.

Já o rompimento de James e de sua tendência com o trotskismo passa pela crítica que o marxista elabora ao próprio Trótski, acerca da forma como a IV Internacional aceitou a nacionalização da produção como uma etapa do desenvolvimento “revolucionário”, mesmo que assim a própria revolução tenha sido “brutalmente reprimida”. Para James, a luta pelo socialismo é a luta pela democracia proletária. Esta deve ser a base do socialismo. E ela avança quando o proletariado se auto-organiza e consequentemente organiza as grandes “massas populares”. A forma como isso se processa é por meio de seus comitês, sindicatos, partidos e outras organizações: “esta não é uma questão russa, mas do marxismo”. Quanto à questão da nacionalização, James recorre à experiência da Comuna de Paris: “a primeira revolução decididamente proletária não nacionalizou nada”.

James tratou de diversos temas do marxismo, desde as categorias centrais da luta de classes e do imperialismo até questões relativas à construção da luta socialista. Foi também um dos principais mentores do pan-africanismo radical, descrito como um movimento teórico e político surgido como resultado da diáspora negra no final do século 19 e começo do século 20. (Arte: Felipe Santos Deveza)

C. L. R. James assevera que o desenvolvimento desigual do capitalismo entre as nações significava também um desenvolvimento desigual do proletariado e, por conseguinte, uma correlação de forças de classe diferente em cada país. Alerta para o exemplo da influência de intelectuais pequeno-burgueses que tinham distorcido as ideias centrais de Marx e Engels, dando espaço para um revisionismo do marxismo na Alemanha – declínio que a seu ver se agravou com as posições antirrevolucionárias da social-democracia alemã, afetando o movimento trabalhista no país, principalmente depois da morte de Engels.

Em 1950, a tendência Johnson-Forest se separou também do SWP, o que significou uma ruptura definitiva com o trotskismo. Durante o tempo que durou sua colaboração, James e Dunayevskaya dedicaram-se a uma exigente releitura do marxismo e da situação de classe internacional contemporânea, centrando-se em elaborar uma crítica radical das burocracias do partido, contra a qual defendiam uma iniciativa proletária autônoma. 

As análises de James sobre as questões de classe e raça, colonialismo e anticolonialismo são abordagens inovadoras no marxismo, que operam uma síntese entre os fatores locais e a universalidade, como se pode observar no The Black Jacobins: Toussaint Louverture and the San Domingo Revolution (1938). No texto, o personagem central, Toussaint Louverture, é apresentado por James como um visionário – à frente de seu tempo. A França revolucionária representava para Louverture o estágio mais alto da existência social que se poderia imaginar (como observa Jacob Gorender [7]), mas ele não conseguiu perceber que, com a Convenção de 1789, a Revolução Francesa havia se inclinado para a direita, afastando-se de sua posição inicial crítica à escravidão nas colônias. A resposta aos revolucionários negros foi brutal. 

James tratou de diversos temas do marxismo, desde as categorias centrais da luta de classes e do imperialismo até questões relativas à construção da luta socialista. Foi também um dos principais mentores do pan-africanismo radical, descrito como um movimento teórico e político surgido como resultado da diáspora negra no final do século 19 e começo do século 20. “Radical” porque não faz concessões ao nacionalismo cultural: “na política, a questão racial está subordinada à de classe, e pensar o imperialismo em termos de raça é desastroso”.

Contudo, adverte: “negligenciar o fator racial, considerando-o puramente incidental, é um erro tão grave quanto considerá-lo fundamental”. James afirma que a IV Internacional ignorou a “questão do negro”, e que esta questão pode fazer a diferença entre o “sucesso e o insucesso em qualquer situação revolucionária”. Entende que as lutas independentes do povo negro não têm mais do que “um valor episódico”, podendo “constituir um grande perigo não só para os próprios negros, mas para o movimento operário organizado”. E mais, que “a liderança real da luta dos negros deve estar nas mãos dos sindicatos e do partido marxista”. Se isto não acontece, a luta dos negros, assim como a do movimento operário organizado, tende a enfraquecer. Sugere então a criação de um Departamento dos Assuntos Negros, tal como há um Departamento da Questão Sindical. Mas isto não se relacionava com uma espécie de luta por “cotas”; sua ideia era a de buscar organizar as massas de negros, papel que deveria ser desempenhado pela IV Internacional. 

Ainda sobre a questão do negro, escreveu em 1938 A history of negro revolt [Uma história da revolta negra], cujo título foi depois mudado para A history of pan-african revolt [Uma história da revolta pan-africana]. No livro, critica o imperialismo e inverte a imagem depreciativa com a qual os negros, retratados como “selvagens”, eram descritos por grande parte dos historiadores da época – muitos, aliás, ardentes defensores do colonialismo como uma “missão civilizadora”. Na contramão, James coloca os trabalhadores negros no centro dos eventos mundiais e desafia essas “crenças” ao revelar seu teor ideológico. 

Sobre o tema, cabe também destacar que C. L. R. James, em 1969, afirma que não reconhece nenhum caráter distintivo dos denominados “Estudos Negros”. Para ele, não adianta falar de Estudos Negros até que não esteja completamente claro que a riqueza que permitiu à burguesia construir o regime industrial veio da escravidão: os negros “forneceram a riqueza na luta que começou entre a velha sociedade e a nova sociedade”, e isto nem de longe pode ser considerado um problema étnico. Recuperando a história revolucionária dos negros, James mostra que a ideia de que o negro fosse dócil era um mito; a história mostra a resistência dos negros, que “se rebelaram contra os caçadores de escravos na África, rebelaram-se contra os comerciantes e se rebelaram nas plantações”. Segundo o autor, há registros de sublevações de escravos nas quais se tomou o comando de navios e até mesmo o controle de colônias, como em parte das Guianas, que dominaram por anos [8]. Em um momento em que a questão étnica parece predominar, e é comumente separada da questão de classe, tal ideia de James se mostra muito atual.

Em seus últimos anos, ele já não defendia o modelo de “partido de vanguarda”, mas antes o trabalho de conscientização a partir da realidade vivida. 

Mantendo durante toda a vida uma coerência política e firmeza ideológica, James nunca abandonou a perspectiva da construção do socialismo. Sua prática política e sua obra teórica refutaram sempre o intelectualismo, isto é, o distanciamento entre o intelectual e o militante “comum”. Para ele, qualquer trabalhador “poderia ser um dirigente político”, e um intelectual deveria sempre prezar “por ser bem entendido pela maioria das pessoas”.

3 – Comentário sobre a obra

Os escritos de C. L. R. James são de grande abrangência, abordam desde temas como esportes e biografias até temas históricos e filosóficos. Autor complexo, não se furtou dos grandes debates da sua época – muitos dos quais continuam atuais –, como a questão étnica, o colonialismo, o socialismo e a barbárie perpetrada pelo modo de produção capitalista. 

O seu livro mais conhecido é The Black Jacobins: Toussaint Louverture and the San Domingo Revolution (Londres: Allison & Burby, 1938) [Os jacobinos negros: Toussaint Louverture e a Revolução de São Domingos] – que teve tradução publicada no Brasil (2000), em edição acompanhada pelo ensaio “De Toussaint Louverture a Fidel Castro”. Na obra, James trata da revolução e da luta pela independência do Haiti (1791-1804); narra o processo revolucionário e tem por personagem de destaque Louverture, quem lidera a luta pela independência dessa colônia francesa e a luta pelo fim da escravidão. Aponta sobretudo o protagonismo dos negros, sua organização e o papel importante desempenhado por Louverture na luta contra a opressão e exploração, dos franceses na Ilha de São Domingos, mas não deixa de mostrar as contradições vividas entre os negros e os mestiços, principalmente aqueles que detinham terras e que desejavam obter os mesmos direitos da burguesia branca francesa. 

Os jacobinos negros é, simultaneamente, uma obra acerca da revolução francesa e da revolução haitiana. Aponta paralelos entre os dois processos políticos, apresentando a Revolução Haitiana como continuidade da Francesa. James explora aí duas contradições:

i) A Revolução Francesa foi uma revolução burguesa, que no entanto atingiu profundamente os escravos, já que a revolução em São Domingos (nome da colônia francesa, substituído por Haiti na independência) aconteceu após os choques entre brancos e mestiços – donos de terra que queriam os mesmos direitos da burguesia francesa. Nesse contexto, os escravos acompanharam a violência desses confrontos e articularam sua própria revolução; 

ii) Além disso, a produção de açúcar era uma atividade econômica intensiva, com forte exploração do trabalho, o que levava à concentração dos trabalhadores escravizados, conferindo-lhes sentido de comunidade, de pertencimento. Esta proximidade cotidiana permitiu aos trabalhadores aprender muitos dos aspectos da civilização ocidental. Assim, este sistema produtivo foi ao mesmo tempo degradante e “civilizador”, pois possibilitou entre os oprimidos a comunicação e a organização de sua revolução. Neste processo, os ingleses acabariam derrotados pelas forças de Toussaint Louverture, homem escravizado que emerge como grande liderança militar e política dos negros haitianos. 

A obra de James traz ainda outras inovações para análise da luta de classes: destacando o papel da religiosidade de matriz africana, especialmente o vodu, como “elo de comunicação” entre os escravizados. Suas práticas e canções ajudaram a espalhar entre as fazendas os sentimentos de unidade e de revolta, sendo um fator fundamental de conscientização dos cativos, que tornou possível sua sublevação organizada. 

James opera também uma síntese entre os fatores locais e a universalidade dos preceitos da Revolução Francesa [9]. Louverture é apresentado por James como um visionário que estava à frente de seu tempo e de suas possibilidades. Segundo o marxista, para Louverture, a França revolucionária representava um alto estágio da existência social; no entanto, o racismo dos franceses, sua incapacidade de conceber seus ex-escravos africanos como cidadãos e sua determinação em restaurar a escravidão (em 1801), tornaram o projeto de Louverture impossível. Ao final do livro, James articula um paralelo entre o levante haitiano e o que acontecia, na época em que escreveu, na África – denunciando o imperialismo que estrangulava e esmagava a “verdadeira riqueza do continente”: a “capacidade criativa do seu povo”. Analisando como o isolamento do Haiti (imposto pelas potências) levou à sua ruína econômica após a revolução, afirma que o sucesso da África descolonizada virá de sua capacidade de articular o local com o que há de melhor no pensamento universal.

Em 1937, um ano antes da publicação dos Jacobinos Negros, James, publicou World Revolution 1917–1936: the rise and fall of the Communist International (Londres: Furnell and Sons, 1937) [Revolução Mundial 1917–1936: ascensão e queda da Internacional Comunista], em que destaca questões históricas da IC e faz um balanço das contribuições de Lênin, Stálin e Trótski. No primeiro capítulo, “Marxismo”, ele analisa as contribuições de Marx e Engels para refutar a possibilidade econômica de um socialismo “nacional”; para James, eles não proclamaram a revolução socialista com base em princípios humanitários, mas sim como uma necessidade econômica, pois: sem a propriedade coletiva dos meios de produção seria impossível a abundância de produtos, mantendo-se a divisão entre exploradores e explorados. Já Lênin, segundo ele, é o responsável por separar os verdadeiros internacionalistas daqueles que destruíram o movimento internacional – ao seguirem as burguesias nacionais. O colapso da força revolucionária da II Internacional foi a ausência de um programa que mostrasse a força do marxismo, bem como de uma luta contra o oportunismo que afastasse os líderes doutrinários. “Paz, mas paz pela revolução, lutando a guerra de classes contra a sua própria burguesia, transformando a guerra imperialista em guerra civil”. A observação que faz neste livro em relação a Stálin passa pela percepção e sua leitura sobre o Lênin: “o mestre absoluto da teoria e da prática política”, culto, com uma capacidade de abnegação e devoção somadas “a um grande conhecimento e compreensão dos homens”, qualidades com que ergue o partido bolchevique no período de 1917 a 1923. A partir destas considerações, James afirma que “o mais adequado” líder que poderia preencher o lugar de Lênin era Trótski. Este livro foi escrito antes do rompimento de James com o trotskismo e com o próprio Trótski.

Em 1938, James publica A history of negro revolt (Inglaterra: Independent Labour, 1938) [Uma história da revolta negra]; em 1969, é publicada uma edição revisada, com o título A history of pan-african revolt [Uma história da revolta pan-africana]. Neste livro, James faz uma reflexão sobre o movimento negro e sua importância para o movimento socialista. Com o movimento negro, ou antes, com a Revolta Pan-Africana, o preconceito e a discriminação racial diminuíram gradualmente, o que fez com que as classes médias negras monopolizassem as profissões e o serviço público (diferentemente do que ocorreu nas Américas, onde os negros eram educados à maneira ocidental, em um papel subserviente). Um dos capítulos é dedicado a São Domingos e seus revolucionários. Para ele, esses revolucionários foram inconscientes, mas potentes alavancas que levaram adiante a civilização moderna. Critica então o imperialismo e coloca os trabalhadores negros no centro dos eventos mundiais. Importante reforçar que historiadores da época acreditavam que os africanos eram selvagens e o colonialismo “civilizador”, de modo que a escravidão seria para eles uma instituição “benevolente”. Desafiando este coro de ficções, James afirma que o “único lugar onde os negros não se revoltaram foi nas páginas dos historiadores capitalistas” [10].

Em 1947, em coautoria com Raya (assinando F. Forest) e Grace Lee Boggs (Ria Stone), James (sob o pseudônimo J. R. Johnson) publicou The invading socialist society (Nova Iorque: The Johnson Forest-Tendency, 1947), manifesto de sua tendência política, no qual eram apresentadas perspectivas e propostas que já prenunciavam sua futura ruptura com o trotskismo.

Em 1948, foi publicado Notes on dialectics: Hegel, Marx, Lenin (Connecticut: Lawrence Will & Co, 1948). Este livro consiste em uma reflexão filosófica do marxismo, abordando o conceito de dialética e sua importância na luta dos trabalhadores. Primeiro reivindica a cientificidade da dialética hegeliana e da marxiana. Refuta qualquer tentativa de transformar a dialética de Marx em uma religião ou “construção teleológica” – segundo a qual se advogasse a inevitabilidade do socialismo. A dialética nos ensina que em todas as formas de sociedade, o desenvolvimento da riqueza material traz também consigo a degradação da grande massa da humanidade. Faz uma crítica ao Estado na URSS, afirmando que há uma “escola marxista” que defende a tese de que na Rússia a política governa a produção, mas na realidade é justamente o contrário, é a produção que governa a política: somente na aparência “o Estado se apodera do capital; na realidade, o capital apodera-se do Estado”.

Em 1950, também com colaboração de Raya e Lee, publica State capitalism and World Revolution [Capitalismo de Estado e Revolução Mundial] (Chicago: Charles H. Kerr Publishing Company). Na obra, apresenta ensaios sobre Trótski, Stálin e Lênin. Busca em Lênin, o argumento central para desenvolver sua teoria do capitalismo de Estado. Em Stálin, vê a ideia de um fim em si mesmo; no stalinismo, um sinônimo de capitalismo de Estado. Destaca que Marx baseou sua visão do socialismo na abolição da dicotomia entre trabalho intelectual e manual, dicotomia esta que mutila a criatividade natural do trabalhador e isola o intelectual. Entende que Lênin segue este mesmo caminho ao centrar sua luta na criação de bases para a democracia econômica direta. Ao contrário, o stalinismo seria para James o reestabelecimento do materialismo e idealismo acríticos, pois relega ao trabalhador a função de trabalhar, e à burocracia dirigente, a função de liderança. 

Em 1963 James publicou Beyond a boundary (Londres; Hutchinson), obra autobiográfica, que reúne análise esportiva e política, fazendo uma crítica da estética e educação vitorianas – vistas pela ótica do colonizado. O livro foi publicado um ano após o colapso da Federação das Índias Ocidentais, quando a Jamaica e Trinidad já tinham se tornado independentes. James reflete sobre a identidade das Índias Ocidentais, o fim do domínio colonial e o críquete como expressão de uma identidade na história do Caribe. Liga o críquete à inquietação de um povo pela liberdade, defendendo que também os líderes de equipe deveriam ser negros. 

Postumamente, em 1992 é publicado The C. L. R. James reader (Cambridge: Blackwell Publishers), editado por Anna Grimashaw. O livro começou a ser produzido em 1983, pela editora e por James, no intuito de levar seu trabalho a uma nova geração de leitores. Foram inclusos escritos chaves da obra dele já publicada, e uma série de documentos, ensaios e correspondência inéditos. Dividido em quatro partes, a primeira “Trinidad (1901-1932)” consiste em duas novelas: “La divina pastora”(1927) [A divina pastora]  e “Triumph”(1929) [Triunfo]. Na primeira novela, James relata a história de Anita, uma trabalhadora na plantação de cacau que depositava no casamento sua esperança de sair da vida miserável. Em “Triumph”, o autor descreve a vida numa espécie de cortiço – que os trinitários chamam de “quartéis”, reminiscência dos tempos em que a  Inglaterra dependia das guarnições de soldados e da sua frota para a proteção das suas colônias produtoras de açúcar; nestes  “quartéis”  viviam os porteiros, as prostitutas, os carroceiros, as lavadeiras e os empregados domésticos. A história conta da vida cotidiana do lugar em dois momentos, o primeiro embora ressalte a violência vivida destaca a festa, o carnaval, a alegria; o segundo momento é marcado pelo ausência da festa – no lugar do pierrô, há o policial, e a alegria é apresentada pelo seu antônimo, a tristeza. Na segunda parte, “Britain (1932-1938)”, há sete textos escritos neste período em que viveu na Inglaterra, entre eles “Stalin and socialism”. A parte III, “America and after (1938-1956)”, reúne nove textos de sua época nos EUA, como “The class struggle” [A luta de classes] e “ Notes on Hamlet” [“Notas sobre Hamlet”]. Por fim, a parte IV, “The African Diaspora (1957-1989)”, traz 14 textos, dentre os quais: “What is art”? [“O que é arte”?], “Black people in the urbain arcas of the United States” [Pessoas negras nas áreas urbanas dos Estados Unidos”], “Lenin and problem”[“Lênin e problema”] e “Three black women writers: Toni Morrison, Alice Walker, Ntozake Shange” [“Três escritoras negras…”].

Em 1993 foi publicado postumamente American civilization (Massachusetts: Blachwell Publishers). No livro, James constata que a Guerra Civil Estadunidense teve como resultado a abolição da escravidão, mas não foi travada em benefício dos escravos. Defende a tese de que a escravidão negra foi a base do capitalismo neste país: foi a escravidão que fez com que o algodão se tornasse “o alimento vital das indústrias britânicas”. A questão era como os novos estados se posicionariam: pela escravidão, como queria o Sul; ou pelo “capitalismo livre”, como queria o Norte. O negro estadunidense ajudou a tornar o país alfabetizado, ocidentalizado, e é, portanto, um estadunidense desde quase a fundação da nação, ainda que continue a sofrer graves humilhações e discriminações. Aponta ainda o jazz como uma reação semiconsciente à “tristeza fundamental” dos negros.

C. L. R. James escreveu também sobre romances, teatro, cinema e quadrinhos. Alguns textos seus podem ser encontrados na página Marxists (https://www.marxists.org); há na rede documentários sobre ele, incluindo entrevistas suas.

4 – Bibliografia de referência

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Notas

[1] CUDJOE; CAIN (1995). ZANIN (2022).

[2] ZANIN (2022)

[3] JAMES, C. L. R. Balance sheet of trotskyism in the United States (1940-1947) (1947).

[4] ZANIN (2022).

[5] The invading socialist society. C. L. R. James, F. Forest, e Ria Stone. Detroit (EUA): Bedwick Editions, 1972 [1947].

[6] Prefácio a The invading socialist society

[7] Conforme Gorender (2004).

[8] JAMES (1939).

[9] Como destaca o sociólogo estadunidense Alex Dupuy, o aspecto progressista do projeto de Toussaint Louverture era que ele buscava preservar o melhor que os franceses tinham a oferecer enquanto rejeitava o pior.

[10] JAMES (1938).

* Com colaboração e edição de texto de Yuri Martins-Fontes e Pedro Rocha Curado, apoio editorial de Jean-Ganesh Faria Leblanc e ilustração de Marcelo Guimarães Lima, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis da USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América. Permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: editoria@nucleopraxisusp.org.

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