huck-e-o-verniz-da-compaixao:-entre-a-fala-publica-e-a-indiferenca-estrutural

Huck e o verniz da compaixão: entre a fala pública e a indiferença estrutural

Não costumo repercutir, no que escrevo, falas das chamadas “celebridades”, mas farei aqui uma exceção devido a alguns comentários que ouvi de pessoas que considero politizadas, e que ficaram impressionadas positivamente com o comentário feito por Luciano, no último domingo (2), sobre o mais recente massacre no Rio de Janeiro. O apresentador da Globo conseguiu “sensibilizar” muita gente com seu discurso. Mas, o que podemos dizer a respeito?

No Brasil, estamos consolidando um modelo peculiar de consciência pública, aquele em que a tragédia precisa ser convertida em espetáculo para existir. É dentro dessa lógica que emergem, de tempos em tempos, as vozes de certas celebridades — como Luciano Huck — tentando ocupar o papel de “consciência moral da nação”. Ocorre, no entanto, que esses discursos, disfarçados de solidariedade e indignação, são mais sintomas do problema do que parte da solução. 

Quando o país se vê diante de um banho de sangue como o que ocorreu recentemente no Rio de Janeiro — com dezenas de corpos negros estendidos no chão, com a favela novamente transformada em campo de guerra —, essas falas midiáticas funcionam menos como denúncia e mais como anestesia. São discursos que produzem comoção, mas não crítica; emoção, mas não ruptura.

A chamada “megaoperação” policial — expressão que o noticiário repete com naturalidade — é, na verdade, o nome burocrático do massacre. Quando o Estado entra em territórios pobres com helicópteros, “caveirões” e fuzis, não está “restaurando a ordem”, como costuma argumentar. E é precisamente aí que as falas ocasionais de celebridades se tornam perversamente funcionais, pois deslocam o foco da estrutura para o sentimento, da política para o afeto. Huck, com sua retórica conciliadora, fala em “tristeza”, em “dor”, em “precisamos fazer algo”, mas jamais nomeia o algoz. A violência é apresentada como uma fatalidade — nunca como projeto.

Em vez de interrogar a lógica necropolítica que autoriza o Estado a matar em massa nas favelas, o discurso celebrizado transforma o luto em oportunidade de consenso. “Todos estamos sofrendo”, dizem. Mas não, nem todos estamos sofrendo. Há quem morra e há quem assista pela televisão, indignado de forma higienizada. A empatia performática das celebridades serve justamente para manter essa distância confortável entre o horror e o privilégio. Quando Huck se pronuncia, longe de romper com a estrutura que produz o genocídio negro, ele a humaniza, e, com isso, ajuda a torná-la suportável (e até palatável).

O problema, que é estrutural, acaba gerando esses sujeitos discursivos que participam do mesmo sistema que sustenta o espetáculo da violência. Huck, símbolo do “empreendedorismo cidadão”, é parte de um projeto que acredita poder resolver o Brasil com boa vontade e filantropia televisiva. Mas a violência que hoje o “entristece” é o resultado de um país que ele ajudou a construir; um país onde os pobres são vistos como problema e as favelas como território estrangeiro. O apresentador, assim como tantos outros que pontuam tragédias com frases de efeito, não fala contra o sistema — fala dentro dele. Sua fala é sintoma de uma hegemonia que transforma toda indignação em mercadoria e todo crime de Estado em tema para stories.

Chacina no Rio de Janeiro: a urgência de uma intervenção federal contra o genocídio nas favelas

A indústria cultural, nesse sentido, produz uma cidadania de superfície, pois, nas mídias — e sobretudo nas redes sociais —, cada massacre convoca uma performance moral: hashtags, filtros de luto, declarações sentidas. Mas, enquanto isso, a estrutura que autoriza o extermínio das periferias permanece intacta. E fica nesse esquema: a favela chora, a elite comenta, a mídia se comove, e o Estado volta a matar. Enquanto isso, o discurso público se torna cada vez mais incapaz de nomear o que realmente está em jogo: o racismo estrutural, o autoritarismo policial e o pacto histórico entre medo e privilégio.

Falas como a de Huck são o braço afetivo desse pacto, uma vez que, ao recusar a linguagem política — “não quero polarizar”, “não é hora de apontar culpados” —, o discurso celebrizado cumpre a função ideológica de preservar a aparência de harmonia nacional. O “Brasil que deu certo” (o da Faria Lima, logicamente) precisa parecer unido até na tragédia. E, para isso, é necessário que a morte dos pobres seja narrada como drama, não como denúncia. Huck, com seu tom pastoral, oferece um tipo de consolo moral às classes privilegiadas. É como se ele dissesse que é possível “lamentar o genocídio sem confrontar suas causas”; “chorar pelos mortos sem questionar o Estado que os produziu”.

Mas não há neutralidade possível diante de um Estado que executa. Cada bala disparada no Complexo da Penha é também o disparo simbólico de uma política de morte que escolhe alvos com precisão racial e territorial. Quando uma celebridade se diz “chocada” com a “operação”, mas evita dizer a palavra massacre, está colaborando com a gramática da exclusão. A linguagem, no Brasil das elites, coloniza até o horror, transformando a barbárie em evento excepcional (quando sabemos que ela é, infelizmente, uma rotina).

Assine nossa newsletter e receba este e outros conteúdos direto no seu e-mail.

Em última instância, o discurso dessas figuras públicas é o espelho polido daquilo que o país não quer ver. Huck não fala para os mortos. Ele fala, sim, para os vivos que temem perder o conforto de ignorar a morte. Com isso, o apresentador reafirma o mito do “país cordial”, onde a desigualdade é um acidente, e a violência, um desvio. Sua “empatia” é uma operação de marketing da consciência. E isso, talvez, seja o mais brutal, porque enquanto o Estado mata, a elite produz narrativas de conciliação, como se o problema fosse apenas a falta de diálogo. Não! O problema é o Estado que transforma corpos negros em alvo, e a sociedade que transforma esse extermínio em pauta de entretenimento.

Cada declaração sentimental das celebridades é um tijolo a mais na muralha do esquecimento. O massacre só se torna possível porque o discurso dominante o enquadra como fatalidade. (Foto: Sam Barnes / Web Summit Rio)

Os discursos de ocasião não são, portanto, inocentes. Precisamos vê-los como a face estética da necropolítica, pois desempenham o papel de mediação simbólica entre o horror e o conforto, entre o sangue e o espetáculo. Quando Luciano Huck fala, o Brasil respira aliviado, pois vê naquela fala que “é possível lamentar sem se comprometer”. E é exatamente essa possibilidade — a de uma indignação limpa, sem risco, sem conflito — que mantém viva a estrutura que mata.

O Rio de Janeiro é o laboratório dessa pedagogia da morte. As favelas, permanentemente vigiadas e invadidas, são o caderno no qual o Estado escreve sua autoridade letal. E, no entanto, quando o sangue corre, a pergunta que não quer calar pública é sempre a mesma: “Até quando?” — como se não soubéssemos a resposta: até quando houver um Estado que trate a pobreza como crime; até quando a Polícia for o instrumento de uma guerra social não declarada; até quando o Brasil preferir ouvir Luciano Huck a escutar o grito das mães que perdem seus filhos (e também filhas) todos os dias para a violência que, na maioria das vezes, tem o Estado como protagonista, seja por ação e/ou omissão.

Leo Lins, MC Poze: quem merece empatia e quem merece punição

Cada declaração sentimental das celebridades é um tijolo a mais na muralha do esquecimento. O massacre só se torna possível porque o discurso dominante o enquadra como fatalidade. E, enquanto isso, as vozes das favelas seguem sendo silenciadas, desacreditadas, criminalizadas. Há algo de profundamente perverso em um país onde a morte precisa da autorização do espetáculo para ser considerada humana.

Por isso, é preciso rasgar o véu da cordialidade e dizer, com todas as letras, o que o discurso público teme. Sim. Esse discurso apaziguador esconde questões muito relevantes. 1) Não haverá solução para esse problema crônico nacional (a matança de pretos e pobres) enquanto o luto for monopolizado pela elite; 2) não haverá justiça enquanto a empatia for espetáculo; 3) não haverá esperança enquanto o sangue negro continuar sendo o combustível invisível da segurança pública. 

Luciano Huck (e seu pares) pode continuar dizendo que está triste. O problema é que o país parece satisfeito com isso.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *