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CAFÉ COM VODKA | “Ou soma ou suma”: o que se esconde na narrativa do “narcoterrorismo” no Rio?

A coluna Café com Vodka é produzida pelo Centro de Integração e Cooperação entre Rússia e América Latina no Brasil (CICRAL Brasil), em parceria com a Diálogos do Sul Global

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A megaoperação policial realizada nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, no último dia 28 — a mais letal da história do estado, com 121 mortos, superando em mais de quatro vezes o recorde anterior de 28 mortos durante a ação no Jacarezinho (2021); bem como a marca de 111 detentos mortos durante o Massacre do Carandiru (1992) — não se esgotou nos números alarmantes. Ela inaugura uma gramática política e policial: a do “narcoterrorismo”, termo repetido exaustivamente pelo discurso oficial durante as coletivas de imprensa, não apenas pelo governador Cláudio Castro e pelo secretário de Polícia Civil Felipe Curi, mas também estampado em manchetes oficiais do governo fluminense[1].

Não se trata apenas de linguagem, mas de política pública orientada por discurso — um discurso capaz de redefinir a fronteira entre segurança interna e conflito armado de caráter internacional.

Durante a coletiva de 31 de outubro, Curi afirmou que o Comando Vermelho “não é mais uma organização criminosa”, mas sim “uma organização terrorista, com práticas terroristas e táticas de guerrilha”. O secretário utilizou exaustivamente o termo “narcoterroristas” para se referir aos presos e mortos durante a operação, ainda que nem todos tivessem passado pela perícia e uma parcela já avaliada não possuísse ficha criminal.

Enquanto isso, o Ministério da Justiça buscava frear a narrativa. Ao lado de Castro, o ministro Ricardo Lewandowski lembrou que terrorismo envolve nota ideológica, propósito político e motivação de discriminação, elementos centrais previstos na Lei Federal Antiterrorismo (13.260/2016). O crime organizado brasileiro, embora violento e estrutural, opera fundamentalmente segundo lógicas econômicas e territoriais, e não ideológicas. “Uma coisa é terrorismo, outra são facções criminosas”, enfatizou o ministro. Não há, portanto, uma divergência semântica, mas uma disputa de classificação jurídica, com efeitos imediatos sobre política interna e relações exteriores.

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A mudança abrupta de terminologia também levanta uma questão de coerência: o relatório da Polícia Civil citado por Curi durante a coletiva de imprensa do dia 31, elaborado em 2020, não evidencia o termo “narcoterrorismo” em nenhuma de suas menções públicas. Fala-se em “milícias”, “tráfico de drogas” e “crime organizado”. A guinada discursiva, portanto, não decorre apenas de um diagnóstico técnico evoluído, mas parece fazer eco a outras empreitadas políticas que temos assistido recentemente.

Ao converter facções em “terroristas”, o governo abre caminho para a ampliação do uso da força letal como política de Estado, redução de garantias jurídicas sob pretexto de combater uma “guerra”, pressão por mudanças legislativas mais duras, militarização ampliada de conflitos urbanos e expectativa de apoio federal e até internacional — sendo este último ponto particularmente delicado.

Pretexto para intervenções

Em um momento em que os Estados Unidos, sob o governo de Donald Trump, promovem retórica intervencionista contra o que chamam de “narcoterrorismo latino-americano”, rotular o crime organizado brasileiro com o mesmo termo é, na prática, pintar um alvo sobre o território nacional. 

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A preocupação não é vã: uma semana após a operação, no dia 4 de novembro, o U.S. Department of Justice enviou carta ao governo do Rio de Janeiro lamentando a morte de quatro policiais e colocando-se à disposição para “qualquer apoio que se faça necessário”. Embora formalmente diplomática e revestida do vocabulário de condolências, a mensagem — assinada pelo representante da Drug Enforcement Administration (DEA – Agência de Repressão às Drogas, em tradução livre) James M. Sparks — sinaliza o interesse direto das autoridades estadunidenses em enquadrar o episódio dentro de sua agenda de segurança trans-hemisférica.

No artigo “’Terrorismos’: uma exploração conceitual”, Eunice Castro Seixas demonstra que, ao longo do tempo, diferentes atores — inclusive o próprio Estado — recorreram à categoria “terrorismo” para legitimar formas excepcionais de violência e controle social. A questão central nunca é apenas a violência em si, mas quem detém o poder de definir qual violência é legítima. Não raro, portanto, a acusação de terrorismo opera menos como definição técnica e mais como mecanismo retórico que habilita poderes de exceção e amplia a latitude de ação do Estado. 

Quando afirma que quem não enxergar o combate ao crime organizado como o “maior problema do Brasil terá que pedir perdão à sociedade”, e dá o “recado” de que “ou soma no combate à criminalidade ou suma!” [sic], o governador não se refere apenas à urgência de uma política de Segurança Pública eficaz, mas envia uma mensagem contra o dissenso político. O slogan “ou soma ou suma” ecoa lógicas de militarização discursiva incompatíveis com o debate público democrático, presentes no distante “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

O Brasil enfrenta um crime organizado transnacional, munido de armamento militar, presença territorial e capacidade de corrupção ativa da máquina pública a seu favor. O perigo é real. Mas chamar isso de terrorismo não responde às causas estruturais, apenas desloca o enquadramento para uma arena global em que soluções militares e estrangeiras passam a parecer aceitáveis.

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A pergunta que surge é: a quem interessa a narrativa do “narcoterrorismo”? Ao cidadão que sofre com a violência? Ou a governos que encontram na retórica de guerra uma válvula de legitimidade?

A história latino-americana mostra o risco: onde a guerra às drogas se converte em guerra política, o inimigo interno torna-se pretexto para intervenções, e as fronteiras de soberania, direitos civis e democracia se estreitam.

Hoje, no Rio, a disputa não é apenas territorial, mas também linguística. E, como toda batalha discursiva, ela define não apenas o que o Estado pode fazer, mas contra quem.

Nota

[1] “Governo do Estado comanda maior operação de segurança em 15 anos e reforça combate ao narcoterrorismo” (28/10/2025, portal de notícias do Governo do Estado do Rio de Janeiro). O termo também aparece na notícia “Governo do Estado realiza maior operação policial da história e apreende quase 100 fuzis em um único dia nos complexos do Alemão e da Penha” (29/10/2025, portal de notícias do Governo do Estado do Rio de Janeiro).

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