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CAFÉ COM VODKA | Sahel, Rússia e os reflexos do conflito ucraniano nas lutas por soberania na África

A coluna Café com Vodka é produzida pelo Centro de Integração e Cooperação entre Rússia e América Latina no Brasil (CICRAL Brasil), em parceria com a Diálogos do Sul Global.

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O objetivo desta coluna é apresentar uma análise sobre a relação entre a Operação Militar Especial na Ucrânia e as mudanças políticas que aconteceram no continente africano, mais especificamente, na região do Sahel.

Antes de mais nada, é importante ressaltar que a mobilização de recursos e a mudança no foco militar da Europa e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para o Leste Europeu não começou em 2022; ela vinha se adensando antes, e as primeiras rupturas políticas no Sahel antecedem a Operação Russa na Ucrânia. O que 2022 fez foi acentuar esse deslocamento de foco e criar um cenário favorável para que os processos de libertação nacional e descolonização no continente africano se acelerassem.

Otan, atuação limitada

Para analisar como isso aconteceu, é útil lembrar o papel da Otan: criada após a 2ª Guerra Mundial com a justificativa de conter a expansão de influência e presença militar da União Soviética no mundo, a aliança seguiu operando mesmo após o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Hoje, ela pode ser vista como um instrumento de manutenção do domínio ocidental, especialmente sobre os recursos energéticos e estratégicos do Sul Global, muitas vezes justificando suas operações militares com narrativas como “combate ao terrorismo” e ao “fundamentalismo islâmico”.

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Em 2022, a Otan começou a reforçar de forma contínua sua presença no Leste Europeu com novas unidades multinacionais e rotações mais frequentes. Surgiram grupos adicionais em países como Romênia e Eslováquia, além de exercícios e vigilância ampliados. Embora a reorientação já estivesse em curso antes, o conflito na Ucrânia funcionou como acelerador político e operacional dessa prioridade: a União Europeia aprovou a Bússola Estratégica, um roteiro de ações coletivas de enfrentamento a ameaças. O conjunto não extinguiu missões em outras áreas, mas reduziu a disponibilidade de recursos para manter a presença efetiva destes países em regiões periféricas.

A guinada soberanista no Sahel

É nesse cenário de alteração nas prioridades europeias e disputa por recursos que o Sahel passa por mudanças internas sustentadas pelo apoio popular e pela crescente rejeição à presença das antigas potências coloniais europeias no continente. Mas o que é o Sahel?

O Sahel é a faixa semiárida que separa o Saara das savanas mais úmidas, se estendendo do Atlântico ao Mar Vermelho. É uma zona de transição em que as chuvas anuais diminuem de sul para norte, o que torna a produção de alimentos e vida urbana muito sensíveis a variações climáticas. No uso amplo, o termo pode incluir vários países; aqui focamos no Sahel central, composto por Mali, Burkina Faso, Níger, Chade e Mauritânia, territórios que integravam as colônias francesas na África Ocidental. Apesar da independência destes países no ano de 1960, os mecanismos de extração e tutela da Europa persistiram ao longo dos anos.

Antes das transições políticas internas, o Sahel já vivia um acúmulo de tensões. Em geral, são sociedades muito jovens (cerca de dois terços da população com menos de 25 anos) e com pobreza elevada. Do lado climático, trata-se de uma faixa em que a irregularidade das estações transforma secas em choques produtivos e deslocamentos. Na segurança, a presença de grupos armados filiados à al-Qaeda e ao Estado Islâmico mantém a violência em corredores de fronteira entre Mali, Burkina e Níger. E há o componente de governança: anos de corrupção, baixa capacidade administrativa e serviços insuficientes corroeram a confiança popular na antiga estrutura do poder público. Esse conjunto de fatores abriu espaço para a popularização de agendas de segurança e soberania, com apoio popular à revisão de acordos externos e a mudanças de governo.

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Entre 2020 e 2023, o Sahel central passou por uma sequência de mudanças de governo: Mali (em 2020 e 2021), Burkina Faso (em 2022) e Níger (em 2023). Esses processos se desenvolveram como rupturas, com agenda anticolonial e grande apoio público, voltadas a rever a dependência de potências europeias, especialmente da França.

Os sinais concretos vieram em sequência. No Mali, a expulsão do embaixador francês (2022) e a saída das missões militares francesas foram acompanhadas pela substituição gradual da assistência europeia por acordos com Moscou, coincidindo com o início da produção de lítio e a abertura de uma diversificação produtiva. Em Burkina Faso, após a mudança de 2022, o país encerrou o acordo militar com a França (2023) e nacionalizou as minas de ouro Boungou e Wahgnion, então exploradas por grupos estrangeiros ligados à Inglaterra. No Níger, a mudança de 2023 levou à retirada total das tropas francesas após protestos de massa, e, em 2024, o país recebeu instrutores e sistemas de defesa antiaérea russos em Niamey; nacionalizou a Somaïr, exploradora de urânio, antes operada pela francesa Orano; e iniciou a exportação de petróleo via oleoduto.

Os efeitos econômicos dessas rupturas são mensuráveis: no Níger, projeção de crescimento do PIB de ~6,5% em 2025, com inflação em queda e pobreza extrema projetada menor, impulsionadas pelo petróleo; no Mali, ~4,9% em 2025, com o início da produção de lítio somado a serviços e agricultura; em Burkina Faso, ~4–5% em 2025, sustentado por serviços e agro, em paralelo à nacionalização das minas de ouro.

Vladimir Putin, presidente da Rússia, e Ibrahim Traoré, presidente de Burkina Faso, durante encontro na Rússia, por ocasião do 80º aniversário da vitória russa sobre o nazismo (Foto: Reprodução / X)

Em síntese, a prioridade ocidental ao Leste Europeu reduziu os meios destinados a outras regiões, enquanto a Rússia, desde as sanções de 2014, ampliou a cooperação de segurança no Sahel (treinamento, assessoria, equipamentos e pessoal), apoio que se mostrou crucial para as mudanças de poder. A Operação Militar Especial consolidou esse redirecionamento, comprimindo ainda mais a capacidade ocidental de sustentar o controle das riquezas africanas e abrindo a brecha que acelerou rupturas na região.

Soberania no Sahel e novos aliados para Moscou. É um movimento que desgasta a velha hierarquia e acelera a passagem da ordem atual de poder rumo a um mundo multipolar, onde acordos de ganho mútuo valem mais que tutela.

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