O Equador atravessa um perigoso desvio autoritário. O governo de Daniel Noboa se apresenta como campeão da luta contra a mineração ilegal, o narcotráfico e a delinquência. No entanto, por trás do discurso da segurança e do “pulso firme”, perfila-se um projeto de controle social e político que ameaça reinstalar velhas estruturas de dominação e racismo.
Daniel Noboa não está focado em desmantelar pela raiz a mineração ilegal nem o narcotráfico, mas em consolidar um cenário de “guerra interna” que lhe forneça inimigos e habilite a militarização, os estados de exceção e a expansão da inteligência. A equação é conhecida: declara-se uma ameaça difusa, exibem-se operações espetaculares e, em nome da ordem, estreita-se o espaço cívico — manifestações vigiadas, lideranças comunitárias sob suspeita, povos indígenas tratados como “zona de exceção” — enquanto o negócio de fundo (extrativismo e rotas de exportação infiltradas pelo crime) permanece. Noboa não busca resolver a violência, mas administrar o medo, rotulando como “delinquentes” ou “terroristas” aqueles que dissentem ou protestam. Tampouco há vontade real de enfrentar o narcotráfico em sua dimensão logística, quando boa parte das apreensões ocorreu em exportações de banana, setor ligado a seu próprio conglomerado empresarial.
Estratégia externa e controle interno
O governo atua dentro de uma lógica geopolítica mais ampla. Suas linhas de ação e discursos de segurança reproduzem manuais impulsionados por agências estrangeiras, orientados a fabricar ameaças internas para justificar a militarização e o controle civil. Os recentes atentados com carros-bomba — de autoria ainda incerta — lembram a velha tática do autoatentado como mecanismo de legitimação do poder; a história latino-americana oferece inúmeros precedentes. A cooperação internacional em segurança (EUA, Israel e outros) existe e pode oferecer capacidades técnicas; o risco é importar doutrinas que normalizam o estado de exceção e a estigmatização do “inimigo interno”. Cada vez que a segurança é definida sem controles, os custos são pagos primeiro pelos povos indígenas, trabalhadores e estudantes.
Não se trata de negar delitos reais nem redes violentas que de fato existem; trata-se de não transformar a exceção em sistema. A segurança democrática se mede por sua capacidade de reduzir a violência sem esvaziar a Constituição de direitos nem criminalizar o protesto. E mede-se, sobretudo, por atacar as causas: desigualdade, captura institucional, corrupção em alfândegas e portos, e economias ilegais que se alimentam da desesperança.
O ataque com armamento de alta tecnologia a uma base de mineração ilegal em Buenos Aires, sem presença humana, teve um valor mais simbólico do que operacional: enviar uma mensagem de força. É um aviso dirigido ao povo — e especialmente aos povos indígenas — sobre o que o Estado está disposto a fazer. Em contraste, o combate real contra o crime organizado e as máfias da mineração foi mínimo, evidenciando um uso político e seletivo da força.
Militarização e nova colônia
A convocação de reservistas e a crescente presença militar nas ruas são passos rumo à militarização total do país. Sob o pretexto de uma “guerra interna”, prepara-se uma nova forma de colonialismo: submeter novamente os povos originários, despojá-los de suas terras e abrir caminho para a exploração de minerais estratégicos. A anunciada reforma constitucional aponta nessa direção, ao tentar eliminar direitos conquistados como a consulta prévia, a justiça indígena, a saúde intercultural e os direitos da natureza.
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Por trás desse processo movem-se interesses globais. Estados Unidos e Israel disputam o controle de recursos como as terras raras, essenciais para a tecnologia moderna; o Equador aparece nesse tabuleiro como um território a ser intervindo, não como um país soberano.
Os direitos do trabalho na mira
Paralelamente, o front econômico se endurece. O governo impulsiona medidas destinadas a enfraquecer os direitos trabalhistas: prolongar jornadas, reduzir salários, flexibilizar contratos, elevar a idade de aposentadoria e restringir a educação e a saúde públicas. Em nome da eficiência e da competitividade, avança-se rumo a um modelo de precarização total. O discurso do “inimigo interno” — mineiro ilegal, narco, agitador — serve como pretexto para desmantelar conquistas históricas dos trabalhadores.
Traços de ditadura
Noboa exibe traços típicos do autoritarismo moderno: carisma midiático, discurso moralista e concentração de poder sob a bandeira da ordem. Em poucos meses, foram fechadas rádios comunitárias, suspenso o acesso a contas bancárias e desencadeada uma repressão que lembra os piores momentos das ditaduras do continente. Se isso ocorre em dois anos de seu mandato, o panorama posterior pode ser ainda mais sombrio, especialmente se consolidar seu controle mediante a consulta popular.
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O país enfrenta um perigoso espelhismo: acreditar que repressão é sinônimo de segurança. Na realidade, a “guerra” declarada ao crime é utilizada para reprimir a dissidência e reinstalar um Estado oligárquico. Noboa, cidadão nascido nos Estados Unidos e formado na cultura empresarial do privilégio, está mais disposto a servir interesses estrangeiros do que a construir um projeto nacional.

Um país à beira…
A desilusão provocada por governos anteriores — em especial pelo autoritarismo de Rafael Correa — debilitou a confiança popular e pavimentou o caminho para a direita. Hoje o país parece resignado, sem esperança nem consciência crítica. Mas ainda há tempo: os movimentos indígenas, operários e estudantis podem voltar a ser o eixo da resistência democrática.
Se não se levantarem agora, amanhã será tarde demais. O Equador pode se ver diante de um regime abertamente ditatorial, sustentado pelo medo, pelo controle midiático e pela ingerência estrangeira. A história, mais uma vez, adverte sobre sua repetição.

