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“Salvação” do Haiti exige formação de Estado, e não missões humanitárias, diz socióloga haitiana

Após o encerramento de mais uma missão internacional sem sucesso para conter a insegurança na qual vive o Haiti, a comunidade internacional se prepara para oferecer mais uma solução para o país caribenho: a criação da Força de Supressão de Gangues (FSG), proposta pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O envio desta força foi autorizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que terá um escritório no país apenas para gestão administrativa. No entanto, essa força ainda não foi formada e não há prazo para que isso seja feito.

Para avaliar as ações mais recentes da comunidade internacional no país e os caminhos que devem ser tomados para solucionar a crise pela qual o Haiti passa, o Brasil de Fato conversou com a socióloga e cientista política haitiana Sabine Manigat. Ela atuou como professora e pesquisadora na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso) no México entre 1978 e 1986, quando regressou ao Haiti e passou a lecionar na Universidade de Quisqueya, na capital Porto Príncipe. Atualmente colabora como pesquisadora independente em instituições acadêmicas do Haiti e internacionais. Manigat esteve no Brasil para participar do seminário “Haiti e Brasil na encruzilhada da contemporaneidade: decolonialidade e antirracismo”, realizado entre os dias 15 a 18 de outubro na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Nesta entrevista, ela afirma que a prioridade para os haitianos é obter representantes legítimos que sintam que representam as necessidades e problemas da população e diz que os meios para essa construção passam pela solidariedade entre os povos. Ela explica que a crise de insegurança está concentrada na capital, Porto Príncipe, mas afeta o restante do país devido ao bloqueio de estradas feito por gangues que exigem pagamentos e dificultam a comercialização de produtos. Ela avalia que as gangues são produto de uma crise interna, começando com recrutamentos clássicos por poderosos econômicos ou políticos em um contexto de desmoronamento da autoridade e que se concentram em bairros populares, o que levanta a suspeita de laços estreitos da oligarquia e de atores políticos com esses grupos armados.

No entanto, a acadêmica critica de forma contundente a ideia de que o Haiti seja um “país humanitário”. Manigat diz que o país não precisa de ajuda emergencial humanitária, o problema central é a falta de Estado para controlar o poder das gangues, que impedem o acesso à saúde, educação e circulação.

Brasil de Fato – Em outubro se encerrou a Missão Multinacional de Apoio à Segurança ao Haiti (MSS), liderada pelo Quênia. Qual é sua avaliação sobre essa intervenção?

Sabine Manigat – MSS, essa missão de apoio à segurança, é uma elaboração que vem da busca por uma solução de pacificação que teve duas fases anteriores. A primeira ocorreu após o assassinato do presidente [Jovenel Moïse] em 2021, que previa a recomposição do Estado haitiano a partir da elaboração de uma nova constituição. Então, por cerca de três anos tivemos um governo provisório sem muita legitimidade, em uma tentativa de reorganizar o tecido institucional, especialmente para aprovar rapidamente uma constituição e, com base nela, realizar novas eleições.

Isso não funcionou por uma série de razões, entre as quais a incapacidade do que restava do governo de organizar tudo isso, sem presidente, sem parlamento. Então, após três anos, houve uma tentativa de construir um executivo. Esta segunda etapa é marcada pela intervenção da Caricom [Comunidade do Caribe – formada por ex-colônias europeias e que tem o Brasil como membro], que foi encarregada de encontrar uma solução com os atores haitianos.

Essa articulação resultou no atual executivo que temos, com nove membros, chamado Conselho Presidencial de Transição (CPT), que tem funcionado mais ou menos no sentido de poder representar formalmente o Estado haitiano quando há uma decisão a ser tomada. E uma dessas decisões foi organizar – essa foi uma decisão dos Estados Unidos – a missão MMS, que deveria resolver o problema com cerca de 2.500 soldados para intervir contra as gangues. Mas isso também não deu certo porque deveria haver uma estrutura institucional que deveria apoiar isso, e não há.

Então, todo o peso dessa decisão recaiu sobre os Estados Unidos, que não querem fazer um investimento financeiro muito significativo no Haiti. Então, quando a presidência de [Donald] Trump começou, uma decisão radical foi tomada: a comunidade internacional vai assumir o controle do Haiti, pelo menos esse é o plano.

Sabine Manigat avalia que eventos como o realizado na UFRJ são demonstrações importantes de solidariedade entre os povos. (Foto: Danilo Góes Pellagi/Seminário Haiti-Brasil /Divulgação)

E, para isso, em primeiro lugar, agradeceu-se à missão do Quênia, que não pôde fazer nada porque não lhe foi dada autoridade nem meios reais, e os quenianos também não tinham vindo para morrer pelos haitianos, ou seja, sem condições, não agiram.

Qual a situação dessa nova proposta internacional de apoio ao Haiti?

Então, essa nova construção institucional contempla, em primeiro lugar, que seja autorizada pelas Nações Unidas, para lhe dar uma legitimidade geral, mas que várias instituições sejam responsáveis por essa operação. As Nações Unidas autorizaram a formação de uma força, chamada Força de Supressão de Gangues, FSG, na sigla em francês.

Essa força será constituída por várias contribuições voluntárias de países que desejarem, e será liderada por um conselho coletivo dos contribuintes, então não se sabe quais, não se sabe quantos e ainda não se sabe muito bem quando eles vão se manifestar. O Panamá já disse que pode oferecer treinamento e formação de policiais, mas não vai enviar tropas.

E está dito que essa força está acima de tudo o que existe no Haiti, incluindo o Estado, mas quem manda são apenas os Estados Unidos. Os países que integrarem essa força formarão esse coletivo de decisão, mas não estarão sob a autoridade do Estado haitiano, nem sob a autoridade das Nações Unidas, porque não é uma missão da ONU.

Então, o que o Conselho de Segurança votou é que haverá um escritório de apoio, claramente de apoio logístico e administrativo, nada mais, que será das Nações Unidas, para apoiar essa força, mas não é uma força da ONU, não há uma autoridade das Nações Unidas que possa estar lá.

Qual a sua avaliação sobre esta solução?

Isso não vai funcionar. Isso não vai funcionar porque, em primeiro lugar, foi pensado totalmente fora de qualquer autoridade, de qualquer legitimidade, de qualquer voz de aprovação no Haiti. Não sei se foi feito assim rapidamente porque, no final das contas, o Haiti não importa tanto, ou se é a expressão de uma dificuldade do imperialismo em saber o que fazer com o Haiti.

O MST desenvolve um trabalho de fortalecimento da produção de alimentos com base agroecológica no Haiti (Foto: Jackeline Mendes/Brigada Jean-Jacques Dessalines)

Então há uma preocupação de que uma nova missão repita os mesmos erros da Minustah [Missão ocorrida entre 2004 e 2017 e liderada pelo Brasil]. Pode ser que seja diferente e não para melhor, porque agora é uma missão, são tropas que vêm realmente para combater os haitianos.

No Haiti atuam gangues criminosas, assim como as que existem aqui [no Rio de Janeiro] e em outras grandes cidades. Claro, o problema é que, como não há Estado no Haiti neste momento, não há nenhum Estado para gerir esta situação.

Como as gangues se formam no Haiti? As missões têm participação nessa formação?

Não, as gangues são produto de uma crise interna. Começa com os clássicos recrutamentos de poderosos econômicos ou políticos para preservar seus interesses. Então, eles formam suas próprias tropas ou grupos, mas em um contexto em que a autoridade está desmoronando. E há uma coisa interessante. Essas gangues, não posso dizer 100%, mas em 95%, só se enfrentam dentro dos bairros populares.

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Em todo caso, o que pode ter acontecido também em parte, mas em parte, é uma autonomização dessas gangues. É como se tivessem saído da autoridade daqueles que as criaram e, então, agora formaram uma coalizão e são mais fortes, mas continuam sendo mais fortes contra os setores populares. Não quero fazer comparações ousadas, mas elas funcionam um pouco como cartéis. E como se trata do centro do país, isso afeta todo o resto.

As principais estradas que vão para a província estão bloqueadas, na saída de Porto Príncipe não passa a produção agrícola, não passa a comida que é produzida no campo, uma série de coisas. Ou melhor, elas passam, mas controladas pelas gangues que cobram. Então, isso dificulta muito a irrigação da economia em todo o país.

Fora de Porto Príncipe, em termos de segurança, temos dois departamentos que fazem fronteira com a capital a oeste, que são o Centre [Planalto Central] e o Artibonite, onde se produz a maior parte do arroz do país. Esses dois departamentos já estão contaminados pela insegurança. No entanto, temos dez departamentos no país.

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Eu moro próximo à região sudeste em uma casa. Ando sozinha, vou e volto. Não há nenhum problema, e sou mulher, sozinha. Isso é muito curioso porque a vida continua normal com todas as limitações dessa falta de comunicação com o centro econômico do país. Mas como é um país muito rural, o problema é que os produtores não podem sair do seu departamento. Mas pelo menos no departamento onde estão, as pessoas compram, vendem. Não falta nada. Falta uma ou outra coisa importada que vem de Porto Príncipe. Mas o essencial, não. Ficou mais caro, isso sim.

Mas isso me leva a uma coisa importante que aproveito para lhe dizer. Há uma narrativa clara sobre o Haiti. A parte da insegurança você já conhece. E a outra parte também, é preciso vê-la de forma crítica, que é a parte humanitária, a de que o Haiti é um país humanitário.

A senhora poderia explicar melhor este ponto?

O Haiti não é um país humanitário. Houve uma sucessão de anos em que as chuvas foram boas, não houve grandes ciclones nem nada. E há comida, há produtos, mas as pessoas não podem comercializá-los.

No entanto, o PMA, o Programa Mundial de Alimentos da ONU, que já é a agência mais importante no Haiti, está ofuscando um pouco o trabalho de desenvolvimento e de apoio institucional que as outras agências realizam. E depois há a Ocha [Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários], que é a agência responsável por fazer os apelos urgentes, os pedidos de fundos, e depois há todos aqueles que vêm em situação de emergência, com toda a boa vontade, Médicos Sem Fronteiras, etc. Mas eles vêm para dar uma ajuda como em situação de emergência, tipo Gaza. Não precisamos disso, as pessoas querem poder vender seus produtos, que a economia se anime, e depois veremos o que falta, porque vai faltar.

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E claro, se essa situação durar mais cinco anos, vamos acabar sendo um país humanitário. Então, o grande problema é a falta de Estado, e todo o resto são derivações. Sempre haverá problemas econômicos, problemas de segurança, pois eles existem aqui [no Brasil], e eu estive no México por meses, há muitos problemas, mas são problemas que o Estado lida bem, mal, medianamente. Para exemplificar um pouco como essa situação é realmente muito urgente, brutal, as pessoas não encontram saúde, não chegam aos hospitais que também foram vandalizados pelas gangues, não podem se educar, não podem circular, não podem vender sua produção.

A universidade neste momento no Haiti mal sobrevive. As autoridades atuais não estão interessadas na universidade, que está com um orçamento muito baixo. As estradas e a capital, acima de tudo, são tão inseguras que os estudantes nunca sabem quando vão conseguir chegar, nem os professores. Então, é um funcionamento esporádico, como as escolas, aliás. Há períodos em que funciona e outros em que não, e isso prejudica enormemente a continuidade do trabalho. Vamos acabar afogados e continuar assim. A situação é realmente muito preocupante.

Qual é a prioridade neste momento?

O que nós, haitianos, temos que conseguir, essa é a prioridade número um, é que haja representantes legítimos, mas não legítimos porque supostas eleições os levaram lá, porque já vimos que isso é muito relativo. Mas que as pessoas realmente sintam que é uma equipe que representa suas necessidades e seus problemas.

Estudantes do Centro Nacional de Educação St. Esprit, em Porto Príncipe, Haiti, fotografados durante visita da ONU em 23 de maio de 2019. (Foto: Leonora Baumann / ONU)

Há líderes dentro do movimento camponês, há líderes dentro das organizações cidadãs, há partidos políticos que estão trabalhando com as organizações populares. Mas, a menos que ocorra uma transição coerente, não são organizações que, a curto prazo, possam se apresentar às eleições. Porque essa conexão com a população ainda é fraca.

Isso passa pela solidariedade entre os povos, isso passa por países progressistas que conseguem dar algum apoio, na medida em que nós também podemos recebê-lo. O povo haitiano tem que se organizar para poder receber essa solidariedade, diferente da oferecida pelas organizações internacionais, que têm outro projeto, o projeto da força. Todas as organizações internacionais estão envolvidas nisso, todas. E foi pedido ao Conselho de Segurança que o batizasse e isso foi feito.

Porque, como eu dizia, a questão dos países é mais complicada. Embora a Colômbia tenha se manifestado simbolicamente e de forma muito forte, [o presidente colombiano Gustavo] Petro foi duas vezes ao Haiti no ano passado. E são gestos fortes, não é? Mas agora, o que precisamos, digamos de forma mais concreta, seria, por exemplo, instituições e organizações com mais possibilidades — não estou falando de dinheiro, embora também se possa ter fundos — que possam dar apoio a organizações e instituições haitianas, da sociedade civil. Por exemplo, este encontro [na UFRJ] é um deles, porque foi organizado por universidades brasileiras, que, por outro lado, já estão trabalhando com profissionais e estudantes haitianos, e isso, sim, são coisas muito valiosas. O apoio que a Via Campesina dá a essas confederações camponesas, há coisas que talvez ainda não sejam muito grandes, mas são muito valiosas e que certamente podem ser desenvolvidas.

A senhora poderia comentar um pouco sobre os movimentos sociais existentes no país?

O Haiti tem movimentos sociais muito fortes, mas é preciso levar em conta que, quando há uma manifestação ou mobilização, de repente aparece a polícia para atacá-los com gás lacrimogêneo e acabar com as mobilizações, mas elas existem.

Atualmente há quatro setores mais atuantes. Há as organizações dos bairros populares, que montaram algumas brigadas de vigilância, como elas chamam, para proteger os bairros, vigiá-los, com consequências inevitáveis. Em primeiro lugar, é: eu te encontro, eu te mato. Então, há uma taxa de mortalidade que é excessiva para esse trabalho de vigilância.

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Mas, por outro lado argumentam que, ‘chamamos a polícia, ela não chega, o que fazemos? Essas pessoas estão entrando para matar, para violar, nós as eliminamos’. No entanto, é um movimento interessante porque reconstitui um pouco o tecido, em termos de segurança, o tecido dos bairros populares, porque, se não, as pessoas não têm para onde ir. É uma mobilização de jovens do seu bairro. Não vai além disso. Há grupos de esquerda, mas esse movimento não se reivindica politicamente.

Depois, há os grupos progressistas, alguns radicais, as organizações que chamamos de civis ou cidadãs que atuam com direitos humanos, legalidade constitucional, feministas, grupos que estão mobilizados por um Estado de Direito. Então, suas demandas são as de que se crie uma arquitetura política que permita sair dessa situação, que permita fazer a transição. Ou seja, que seja realmente nomeada uma pessoa, um primeiro-ministro de fato para um governo de salvação nacional.

Bem, entre esses grupos há um grupo chamado El Acuerdo Montana, que é talvez o mais representativo desses setores cidadãos, que tentou participar do que acabou se tornando o Conselho Presidencial, que propôs uma fórmula colegiada, mas foi desvirtuada. Eles propuseram três pessoas, disseram que não, que não era suficientemente representativo, e aumentaram para nove, e com nove não dá para trabalhar, evidentemente.

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Depois, há o movimento sindical, que está muito ativo neste momento, porque com a crise várias empresas que fazem parte do setor de máquinas para indústrias de exportação estão fechando, e não só estão fechando empresas, mas também pressionando as que permanecem abertas, porque os trabalhadores fizerem uma reclamação, por exemplo, sobre salários, que são de fome, serão demitidos. Portanto, há várias greves neste momento, uma no complexo industrial offshore que fica em Porto Príncipe e outra também em outra dessas empresas de exportação perto da fronteira com a República Dominicana, no norte.

E depois há o movimento camponês, que deve ser levado em conta, porque os camponeses são a classe mais numerosa e melhor organizada do país neste momento e estão conectados com o MST [Movimento dos Trabalhadores Sem Terra], com a Via Campesina. Existem quatro grandes confederações que cobrem todo o país.

Uma delas é o MPP, Movimento Camponês de Papay. Papay é a região onde nasceu essa confederação, provavelmente a mais forte, que controla todo o centro do país e em todas as seções comunais há uma célula do MPP. Eles são muito, muito fortes.

Depois, a segunda confederação se chama Tet Kole, que fica no norte, principalmente em dois departamentos, o norte e o noroeste. Também há o MPNKP [Mouvman Peyizan Nasyonal Kongrè Papay], que é uma confederação mais ampla, mas provavelmente menos forte que a MPP, mas que cobre todos os departamentos, com força em alguns e em outros não. Ou seja, na realidade, ela tem vocação nacional, mas é mais forte em algumas regiões, por exemplo, no sul.

E, finalmente, há a Kros [Kòdinasyon Rejyonal Òganizasyon Sidès], que é a confederação regional de organizações do sudeste, uma organização como o MPP, muito forte em seu departamento, que é o sudeste.

Esses movimentos camponeses têm um projeto para o país? O que eles reivindicam?

Eles têm dois projetos. Um deles é a reivindicação de uma agricultura camponesa de soberania alimentar. Ou seja, é algo que está acontecendo, que é muito importante aqui no México, há uma renovação de tudo isso. E muito especificamente no caso do Haiti neste momento, que não lhes tirem suas terras.

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Porque essa pacificação do país [feita pelas missões internacionais] também vem com mais zonas francas, que tiram as terras dos camponeses, para eles irem trabalhar nas zonas francas e poderem investir nas terras em turismo, extrativismo, tudo o que está na ordem do dia, não apenas para o Haiti.

E esses movimentos têm força política para formar um novo governo? Eles tentam isso?

Aí está a limitação dos movimentos sociais no Haiti, que sempre tiveram uma conexão fraca com as forças políticas. Além disso, essas forças políticas se deslegitimaram por todo o processo que ocorreu desde 1986 [quando terminou a ditadura de François Duvalier, o chamado Papa Doc], com políticos que acabaram se desviando do projeto inicial, como Jean-Bertrand Aristide. Então, isso fez com que as relações que já eram fracas entre os partidos políticos e a sociedade civil se distanciassem ainda mais. E isso é um problema, porque o movimento social por si só não pode exercer poder. O que você pode é apoiar, se este é o meu projeto, isso me representa, e apoiar.

Mas há partidos que apoiam?

Não, há partidos que têm legitimidade aos olhos da população e outros que não. Mas os que têm legitimidade não têm uma força organizativa que lhes permita conectar-se com o movimento social e representá-lo. Claro, é uma intenção, é um projeto. Eles estão trabalhando, mas tradicionalmente têm sido muito fracos. O desenvolvimento da crise de 1986 não ajudou ao seu fortalecimento, mas eles estão lá. Eles existem.

E há condições para uma eleição no Haiti?

Neste momento, não, nenhuma. A menos que se queira fazer como as eleições que tivemos desde 1995, após o golpe contra Aristide, que são eleições teleguiadas pelas forças internacionais de tal forma que as pessoas já não acreditam nas eleições. Mas, além disso, as condições concretas têm que estar reunidas, ou seja, restaurar uma estrutura mínima de Estado de Direito, permitir que as pessoas circulem, o que neste momento não podem, para poder, pelo menos, sei lá, fazer campanha, ir votar, tudo o que é normal, digamos, em uma situação como essa.

E qual pode ser o papel da comunidade internacional para apoiar o Haiti neste momento?

A comunidade internacional já tem seu plano traçado e o que falamos no início sobre as diferentes missões corresponde a esse plano. Não creio que devamos esperar que qualquer parte da comunidade internacional diga: “Bem, vamos ajudar os haitianos a realizar seu projeto”. Não. Mas a solidariedade dos povos, sim, conta. E no caso do Haiti, ela é muito subdesenvolvida, o Haiti é invisibilizado. É por isso que eventos como o que estou participando aqui são fundamentais para despertar essa solidariedade.

Estou surpresa com a qualidade, o compromisso, o interesse que existe no meio universitário e também em grupos de solidariedade, digamos, pessoas comprometidas com o Haiti. A maioria dos haitianos nem tem ideia de que existe esse potencial de solidariedade, mas nós temos que fazer o trabalho de divulgar e vamos ver quanta solidariedade podemos despertar.

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Enquanto o movimento social, que é forte, não conseguir obter legitimidade — e é isso que tentamos com o CPT [Conselho Presidencial de Transição] e bem, acabou que nos escapou, ou seja, o movimento não conseguiu manter esse vínculo entre o CPT e as demandas populares por uma transição democrática — então, enquanto não houver isso, como se pode pedir a um Estado, a uma autoridade internacional? Ou seja, Brasil, México, para falar dos países progressistas, Colômbia, Venezuela.

Outros países do Caribe também poderiam ajudar, mas essas coisas são feitas de Estado para Estado. Há uma parte importante do trabalho que os haitianos têm que fazer, que é conseguir que tenhamos um CPT ou seu substituto mais provável, que tenha dignidade, capacidade ou, pelo menos, um projeto, e que reconheça sua fraqueza, para que possa ser nossa voz na busca, e aí sim poderemos conseguir uma solidariedade de Estado para Estado. Neste momento, não se pode pedir a um Estado que escolha um grupo no país e diga: ‘Ah, esse eu vou apoiar’.

O que está em andamento neste momento é a mobilização popular, o fato de haver organizações que estão trabalhando com essas organizações populares tem que levar a algo. Mas, enquanto não fizermos isso, ninguém pode fazer por nós.

Editado por: Vivian Virissimo

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