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CRÔNICA | Feijão camagua, raíz latino-americana: pertencimento ou afirmação, identidade ou submissão?

Clemencia comprou feijão camagua — e, sem saber, comprou também o reencontro com sua identidade latino-americana. O grão saltou do cesto de dona Maria, ficou de cabeça para baixo, levantou as mãos e dançou, mas Clemencia estava entretida buscando os pimentões mais bonitos.

O camagua não se deu por vencido e usou sua última cartada: atirou-se de barriga sobre os maços de sete montes [1] — sabia que era a única forma de chamar a atenção da distraída.

Com cinco pimentões na sacola, Clemencia procurou as cebolas, mas, como um montarral espesso [2] de fim de inverno, surgiram diante dela os sete montes.

Sentiu o aroma da infância vindo das montanhas da Sierra de las Minas. Arrepiou-se e uma enxurrada de lembranças despencou: quando vendiam queijo fresco, creme, requeijão e soro na casa de seus pais, em Teculután [3], Zacapa.

Rememorou também os anos em que, se chovia, a mãe gritava de onde estivesse para que cobrissem os espelhos com uma toalha e desligassem a televisão — rituais que Clemencia não segue e que não ensinou aos filhos.

Na verdade, seus filhos não sabem o que é requeijão e muito menos soro de vaca. Se ela lhes contasse que a mãe punha uma ferradura de cavalo atrás da porta com uma trança de alho, não acreditariam e ainda perguntariam de onde tirou essa história.

Muito menos lhes diria que regava a entrada da casa com água de sete montes ou que deixava o maço num vaso embaixo do balcão.

Acreditariam se lhes contasse que cresceu varrendo o pátio com vassoura de palha? Primeiro perguntariam: que palha? Não, seus filhos não a imaginariam assim, jogando água no pátio com uma bacia, lavando roupa à mão e estendendo-a no varal.

Muito menos creriam que também ordenhava as vacas que o avô materno comprou para que a mãe começasse um negócio e não ficasse esperando que Silverio, o marido, lhe desse dinheiro.

O fato é que, se lhes contasse que os pés se enchiam de bichos-de-pé, perguntariam o que foi que aconteceu, se ela está bem ou delirando — que história é essa de que está falando.

Não acreditariam que cresceu comendo tortilhas, as mesmas que estão proibidas em sua casa, como a batata, o milho verde, a banana e tudo o que a treinadora pessoal e a nutróloga da família dizem que não se deve comer.

É sua culpa. Clemencia leva a mão ao peito. Ao longe, ouve a voz de dona Maria perguntar o que vai levar, mas não distingue; vê os lábios se moverem, mas não entende o que ela diz.

É sua culpa, repete para si. É sua culpa por não lhes ensinar de onde vêm, quais são suas raízes. Por isso são adolescentes arrogantes, que acham que, porque têm dinheiro e cinco empregados em casa a serviço de todos os seus caprichos, tudo lhes pertence como se fossem seus sapatos.

É sua culpa não ter aproximado os filhos da sua família, das suas raízes. Ao contrário, aproximou-os da família do marido — rica, de bons modos, que viaja pelo mundo quando quer e vive de férias em férias.

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Por que renunciou à sua identidade latino-americana? Um golpe de realidade cai como um balde de água fria: por que escondeu a própria família e nunca os visitou, se nunca lhe fizeram mal? Ao contrário, seus pais se desdobraram por ela e pelos cinco irmãos. Por que seus filhos não conhecem os tios nem os avós?

Por que inventou um diploma universitário que não tem? Para não os envergonhar sendo a única da família sem diploma? Que estúpida, diz para si, e dá um tapa na própria cabeça. Dona Maria continua perguntando o que vai levar; vê Clemencia mais distraída do que de costume — com quem será que está falando agora?

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Clemencia vai ao mercado todas as quintas-feiras; um dos motoristas a leva. Embora as empregadas responsáveis pela casa façam as compras no supermercado, Clemencia repete o mesmo ritual de quinta-feira há quinze anos. Precisa sentir as verduras e as ervas frescas; sabe que jamais se compararão às do supermercado, por mais dinheiro que pague.

Dona Maria eleva a voz — “O que foi, Clemencia?” — e a traz de volta.
— Dona Maria, como vai? Dê-me, por favor, um maço de cebola. Eu queria levar os sete montes, mas não tenho onde pô-los. E me dê também, por favor, cinco libras de feijão camagua.

Os feijões dão as mãos e começam a pular juntos: afinal, Clemencia vai levá-los. Adoram ver, das janelas da cozinha, o quintal cheio de grama verde, a piscina e o jacuzzi, ainda que depois terminem embrulhados em massa e palha de milho.

Clemencia vê o feijão camagua há anos, sempre no meio do inverno e na época do atol de milho verde, do milho assado com limão e sal, do chipilín [4] com arroz e creme e dos tamalitos [5] de feijão camagua. Compra também uma rapadura clara e uma abóbora madura.

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De vez em quando, esses golpes de realidade sacodem Clemencia: a terra onde nasceu a chama. Sente, na boca do estômago, um sopro gelado quando bate a saudade, mas nunca se atreveu a voltar — apenas envia dinheiro aos pais todos os meses.

É muito o que tem a perder. Uma vez por mês, dona Maria leva tortilhas. Clemencia as come escondida no quarto, com queijo fresco comprado no mercado. Depois, vomita — seria incapaz de engordar e ser julgada pelas amigas e, pior ainda, pela família do marido.

O feijão camagua, ela dá de presente às empregadas para que façam tamales; o mesmo com a abóbora e a rapadura — vejam só como má empregadora ela não é.

Despede-se de dona Maria, entra no carro em que o motorista a espera e vai embora. No caminho, se prepara para entrar de novo no personagem: deixa de ser Clemencia e se converte em Valentina.

Em fingir, virou especialista, afinal, tudo ao redor é falsidade. Leva as mãos ao rosto, imaginando que, se no seu povo soubessem que adotou o nome Valentina para se encaixar na sociedade, imediatamente a chamariam de Tina, banheira, jato d’água, poça, olho d’água onde as vacas bebem. Até o feijão camagua e os sete montes ririam dela — sabe que no oriente não perdoam.

Notas

[1] Ramo de ervas tradicionais usado em práticas populares de limpeza, proteção e cura espiritual — muito comum na América Central (especialmente na Guatemala).

[2] Aglomerado de mato espesso, um terreno coberto por vegetação densa, arbustos ou plantas silvestres — algo como um mato fechado ou capoeira.

[3] Pequena cidade no interior da Guatemala, a 121 quilômetros da Cidade da Guatemala.

[4] Erva comestível muito comum na América Central, especialmente na Guatemala, El Salvador, Honduras e sul do México (Chiapas), parecida com espinafre ou ora-pro-nóbis.

[5] Massas de milho cozidas no vapor, geralmente envolvidas em folhas de milho ou folhas de bananeira. A massa pode ser simples ou recheada com carne, feijão, queijo, vegetais, frutas ou molhos.

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