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António Guterres: Nos 80 anos da ONU, mundo está diante de 5 escolhas que podem mudar o futuro

“Prever é o dever dos verdadeiros estadistas:
deixar de prever é um delito público; e um delito maior não agir,
por incapacidade ou por medo, de acordo com o que se prevê.”

José Martí, 1887 [1]

Nova York sediou a 80ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Em seu discurso inaugural, António Guterres, secretário-geral da ONU em fim de mandato, instou líderes mundiais a tomar medidas urgentes diante de conflitos, da crise climática e de desafios tecnológicos, e advertiu para o risco de um mundo dominado pela impunidade e pela desigualdade.

Diante dessa situação, afirmou: “É o momento de escolher”, pois o mundo entrou “em uma era de perturbações descontroladas e sofrimento humano implacável” [2].

Em sua fala, Guterres recordou que a ONU foi criada em 1945 “como uma estratégia prática para a sobrevivência da humanidade”, por dirigentes e intelectuais que tinham sido testemunhas da Segunda Guerra Mundial.

Um enfrentamento em que impérios competiram entre si utilizando todos os recursos e armas possíveis em uma luta pelo domínio global. Em seis anos, 60 milhões de soldados e civis foram mortos pela ação militar ou pelo genocídio organizado pelo Estado, e outros 20 milhões morreram de fome ou doença. […] Extensas florestas, milhões de hectares de terras agrícolas e fábricas avaliadas em trilhões de dólares foram destruídas. Em agosto de 1945, a arma mais destrutiva jamais construída matou mais de 100 mil pessoas em dois breves momentos, e condenou incontáveis outras a uma morte prolongada. […] O único vencedor foram os Estados Unidos. Emergiram da guerra fisicamente intactos e economicamente mais poderosos do que nunca. A produção para a guerra quase dobrou o Produto Interno Bruto do país: quase dois terços da produção mundial estavam concentrados nesse país, o novo hegêmona global [3].

As cinco escolhas críticas de Guterres

Naquele contexto, disse Guterres, “a verdadeira liderança significava criar um sistema para evitar que esses horrores se repetissem”. Hoje, os princípios da ONU “estão sendo postos à prova, os pilares da paz e do progresso balançam sob o peso da impunidade, da desigualdade e da indiferença”.

Ele apresentou cinco escolhas críticas para a humanidade:

  1. Paz e direito internacional

Citou os conflitos no Sudão, na Ucrânia e em Gaza. Condenou tanto “os ataques terroristas do Hamas de 7 de outubro” quanto “o castigo coletivo do povo palestino e a destruição sistemática de Gaza”. Pediu cessar-fogo imediato, libertação dos reféns e acesso pleno à ajuda humanitária.

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  1. Dignidade humana e direitos universais

Defesa da liberdade de expressão, da igualdade de gênero e da proteção de migrantes e refugiados. “Os direitos humanos não são um enfeite da paz, são sua base”, afirmou.

  1. Justiça climática em risco

Alertou que a janela para limitar o aquecimento global a 1,5 °C “está se fechando rapidamente” e pediu investimentos maciços em energias limpas. “Os combustíveis fósseis estão perdendo terreno, mas os subsídios públicos a este setor superam de nove a um os destinados a energias renováveis.”

  1. Tecnologia a serviço da humanidade

Denunciou que a inteligência artificial avança mais rápido que a regulação e pode trazer riscos graves, da vigilância massiva às armas autônomas. Propôs padrões universais e financiamento para que países em desenvolvimento construam seus próprios sistemas digitais.

  1. Reforma da ONU e do sistema financeiro

Defendeu fortalecer a ONU para o século 21, com um Conselho de Segurança “mais representativo e eficaz” e um sistema financeiro internacional mais justo. “Por cada dólar investido em construir paz, o mundo gasta 750 em armas de guerra.”

A trajetória política de António Guterres

O vigor da intervenção expressou o compromisso de Guterres com os valores que defende. Português de nascimento, proveniente de uma família de classe média, tinha 25 anos em 1974, quando a Revolução dos Cravos derrubou a ditadura que esmagava seu país desde 1926. O processo estabeleceu a democracia vigente e libertou colônias africanas em luta.

Engenheiro de profissão, Guterres foi primeiro-ministro de Portugal (1995-2002), presidente da Internacional Socialista no mesmo período e alto-comissário da ONU para Refugiados (2005-2015). Sua gestão como secretário-geral da ONU começou em 2017 e se encerra este ano.

Não surpreende, portanto, que tenha encerrado seu discurso recordando a infância sob a ditadura portuguesa:

“Aprendi cedo a perseverar, a falar, a não me render. O verdadeiro poder reside nas pessoas, em nossa resolução compartilhada para defender a dignidade e a igualdade. Nunca me renderei. Pela paz, pela justiça, pela humanidade e pelo mundo que sabemos possível.”

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Diante disso, cabe dizer que correm tempos em que mesmo a social-democracia, se sincera, se torna subversiva.

Desafios da ONU e do sistema internacional

À luz de seu discurso, quatro aspectos merecem atenção:

  • Transição histórica: a ONU marcou a passagem do sistema colonial (1750-1950) para uma organização internacional. A 80ª Assembleia reuniu 193 estados-membros, contra apenas 51 signatários da Carta em 1945.
  • Papel econômico: os acordos de Bretton Woods (1944) criaram um sistema global dolarizado, com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial sustentando o crescimento dos anos 1950 e 1960.
  • Poder global: o Conselho de Segurança se manteve nas mãos das potências vencedoras da Segunda Guerra, mas novas forças emergiram — como África do Sul, Índia e Brasil.
  • Crise socioambiental: o sistema mundial colide com os limites do sistema Terra. Se não houver enfrentamento, os valores defendidos pela ONU podem ruir.

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Esses são alguns dos grandes desafios da longa marcha da humanidade rumo ao encontro consigo mesma. Tal é a circunstância que define o contexto histórico em que nos cabe atuar — ajudando a prever, como pedia Martí nos primórdios deste tempo.

Alto Boquete, Panamá, 26 de setembro de 2025

Notas:
[1] “Discurso em comemoração do 10 de outubro de 1868, em Masonic Temple, Nova York. 10 de outubro de 1887.” Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. IV, 218.
[2] Felicitas Urroz Baeza, 23 set. 2025. Disponível em: Infobae.
[3] Eric Hobsbawm (1995: 218): Age of Extremes: The Short Twentieth Century, 1914-1991, apud Ian Angus (2016: 138): Facing the Anthropocene. Fossil Capitalism and the Crisis of the Earth System. Monthly Review Press, Nova York.

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