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CRÔNICA | Trânsito em julgado: quando a sentença é viver e morrer no sistema prisional

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O gosto que repousava na boca de C. era de ferrugem. Ele conhecia aquele sabor desde moleque — dos tempos de briga na escola. Era sangue afogando sua garganta. O segurança não era um homem, era uma marreta. Uma engrenagem de um hipermercado que sequer o conhecia; era um crachá que vigiava e castigava. Seu soco não carregava ódio nem acerto de contas: era apenas trabalho; possuía a frieza de um procedimento operacional padrão.

C., no chão do depósito, era resultado de uma equação: fome + produto não pago = espancamento. Simples assim. Uma senhora, que gritava do lado de fora sua salvação (ou maldição, como veremos?), acionou o 190. Os homens chegaram e restabeleceram a normalidade. Isto é: preservar o patrimônio, e não a vida. C. era um menino. Dezenove anos. Um dado estatístico que sangrava quase até à morte.

Antes do gosto de ferrugem na boca, que o sangue e alguns dentes quebrados lhe traziam, a memória de um mundo com cheiro de cimento fresco lhe dava conforto. Era o material que constrói, ergue, mas que nunca seria seu — sempre do e para os outros. O Velho, seu pai, cantava Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa (1893–1966), imortalizada pela voz de Silvio Caldas (1908–1998), não como canção, mas como feitiço contra o caos. A voz áspera adquirida pelos anos de fumo inveterado não o impedia de replicar a mesma rouquidão de fundo da voz de Caldas nas partes: Minha porta, hoje, vive fechada (…)

E., com a barriga lisa, era a promessa de um futuro que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em suas planilhas, já havia negado por probabilidade. O amor deles era um ato de insurgência contra os números, era a única coisa que realmente importava nas noites em que as rajadas de metralhadora ecoavam na Comunidade.

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A sentença

A doença do Velho foi a primeira demolição. O diabetes tipo 2 materializava um corpo que já não processava a própria existência. Os números da glicemia — 480 mg/dL — e da hemoglobina glicada — 13% — eram uma sentença escrita numa língua que C. não entendia, mas que condenava um dos repositórios de seu maior amor: seu pai.

A perna amputada não foi cortada, foi extinta. A serra cirúrgica derrubou uma árvore que sustentava não só o pai, mas também C., foi um abalo familiar e comunitário, até os vizinhos lamentaram.

A morte da mãe não foi um acidente de percurso. O ônibus que ligava a cidade de São Gonçalo a Niterói era apenas o agente logístico de uma entrega já programada pelo destino ou pelo álcool, doença que a acometeu desde jovem.

O filho que nasceu com lábio leporino não tinha uma deformidade; tinha uma fenda, uma geografia do acaso marcada no rosto, um canyon aberto por terremotos genéticos e sociais. Era a paisagem de sua herança.

A nação é uma veia aberta, pulsando sob uma pele fina. A amputação do Velho, a morte da mãe, o lábio do menino não eram feridas isoladas: eram hemorragia que vazava pelas suturas malfeitas de uma paz social inexistente.

A audiência do nada

A audiência de custódia não foi julgamento. Foi um ritual de passagem, pela fidelidade à precisão, foi um rito asséptico. Promotor, juiz e defensora não eram pessoas: eram avatares de um sistema que precisa, acima de tudo, se autopreservar. A palavra prisão “preventiva” não significava prevenir um crime futuro, mas o incômodo que a liberdade de C. causaria à ordem pública — uma ordem abstrata, um deus ex machina que justifica todas as violências.

Enquanto o juiz falava, em algum lugar no labirinto de Brasília, o Princípio da Insignificância, desenhado para casos exatamente como o de C., era uma letra morta, um fantasma legal que nunca salvaria o menino da manteiga e do açúcar.

A defensora, ao sussurrar “furto famélico”, não argumentava: recitava mantra enfadonho para sua própria consciência, um placebo jurídico, um ritual de “Data Venia”, tão comum na boca dos doutos bacharéis. A porta da cela não se fechou atrás de C.; o mundo é que se abriu, revelando sua verdadeira face: um lugar onde alguns homens são cidadãos e outros, casos perdidos.

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A ontologia do cárcere

O presídio não é uma construção qualquer. É um estado de ser, um panóptico permanente, um estado de vigília onde nunca ninguém dorme de verdade. A tortura é generalizada até para os agentes da lei, o sofrimento é democratizado, evidente que em graus diferentes.

Lá dentro, C. não foi destruído, foi desmontado e remontado numa nova configuração, como se tivesse modificado um sistema operacional defeituoso. Sua identidade anterior — o filho, o amor de E., o pedreiro — foi metodicamente apagada. Ele foi batizado na única igreja que de fato opera ali: a da sobrevivência a qualquer custo. E o custo da sobrevivência não vale à pena. O preço é impagável, e os juros cresciam no ritmo do medo.

Maconha, cocaína, crack não eram drogas, mas sacramentos dessa nova religião. Liturgias químicas para suportar o insuportável e o indizível, para um menino que não tolerava o cheiro do cigarro do Velho. Seu corpo, negociado no escuro, não foi violado, foi monetizado, precificado e vendido por carteiras de cigarro – uma das moedas mais valiosas do local. Era o único capital que lhe restava na economia do desespero.

Ele aprendeu a se desligar, a transformar a si mesmo em objeto, a deixar que usassem sua casca enquanto sua mente viajava para um campo de futebol empoeirado em Boa Vista, um bairro de São Gonçalo, onde a bola e os moleques do bairro eram marcas de inocência de uma infância difícil, mas digna.

O vírus HIV não foi uma infecção. Foi a transubstanciação. A assinatura biológica do sistema em seu corpo. A prova material de que ele havia sido processado, utilizado e descartado. Era o carimbo definitivo da sua nova ontologia, C. não tinha letramento sequer para conseguir entender o vocabulário médico que lhe era enfileirado como dominós a cair.

O trânsito em julgado

A morte do filho foi revogação do futuro. A carta não trouxe notícias; trouxe um veredito. O processo judicial de C. já não importava. A verdadeira sentença já havia sido cumprida ali dentro. Sua morte por pneumonia não foi por falta de antibióticos. Foi por esgotamento ontológico. Não havia mais ele para habitar aquele corpo. Ele sucumbiu por pura falta de vontade. Não porque não quisesse, mas porque lhe fora negada.

E o carimbo “EXTINTO POR ÓBITO DO RÉU” não era informação. Era a mais pura e crua poesia burocrática. O sistema, em sua sublime e aterradora genialidade, declarando que a única coisa que importa era o processo. O homem era um apêndice do réu. O réu foi extinto. O homem, portanto, tornou-se irrelevante.

“ENDEREÇO DESCONHECIDO” não é sobre local de enterro. É a declaração filosófica final: a humanidade de C. não tem mais localização no universo. Foi apagada do mapa da existência.

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Epílogo: o navio

E., em Icaraí, trabalhando na casa de uma família de classe média, não estava triste. Operava além da tristeza. Seu movimento com o rodo no chão de porcelanato não era limpeza: era ritual de apagamento. Cada ida e volta apagava um pouco mais do mundo que existia do cheiro de cimento, do som da música, da textura e da pele do filho. Ela não está limpando um chão, está apagando a si mesma. A vista para a ponte era ironia final: símbolo de conexão para uma mulher irremediavelmente desconectada. São Gonçalo – Niterói – Rio de Janeiro (uma conurbação geográfica cruel com quem não herdou espólios.

  1. foi apenas mais um corpo lançado ao mar do esquecimento a partir do convés deste navio de escravizados que ainda não completou sua viagem. Sua tragédia, como a de milhões, é o combustível que move esta embarcação em curso eterno. Seu cansaço, o último sentimento restante, era a única bússola diária indicando que o navio ainda não chegara ao porto. E talvez nunca chegue.

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