Cercado por ditaduras, o Chile fez a sua escolha. No dia 4 de setembro de 1970, as urnas outorgaram o poder a Salvador Allende Gossens (1908 – 1973). Foi uma vitória sem tiros, conquistada pelo convencimento das palavras e pelo trabalho de base da Unidade Popular (UP). Mas era uma vitória sitiada. Desde o primeiro instante, sob a sombra da Guerra Fria (1947 – 1991), ela foi um ato de resistência que vivia sob tensão permanente.
O então paranoico Presidente dos EUA, Richard Nixon (1969 – 1974), cuspiu muitos impropérios nos pés do servil secretário de Estado Henry Kissinger (1973 – 1977), e perguntou-lhe como isto fora possível: um “comunista” no “nosso quintal” eleito por voto popular? Kissinger não tinha uma resposta naquele momento, mas tinha uma solução: a arma para conter aquele que, como veremos, seria visto a posteriori como um “desastre” para os estadunidenses. A saída seria o uso da força bruta, primal, antipolítica, aniquiladora e nojenta sob quaisquer pontos de vista. A “via chilena ao socialismo”, como projeto histórico, propunha uma transição pacífica e democrática, uma ideia analisada em profundidade por autores como Joan Garcés (1944), assessor direto do presidente.
Era a construção de uma nova sociedade, pluralista, que nacionalizaria suas riquezas estratégicas – como o cobre, “a viga mestra da economia” – e promoveria uma profunda redistribuição de renda e poder. Allende, o médico sanitarista de Valparaíso que diagnosticara as patologias sociais de seu país, propunha um tratamento revolucionário. Sua plataforma não era um salto no escuro, mas a culminação de décadas de luta operária e camponesa, um processo de acumulação de forças sociais longamente maturado. A UP representava um mosaico de forças, desde o Partido Socialista e o Partido Comunista até facções da Democracia Cristã, unidas por um objetivo comum: a superação do subdesenvolvimento e da dependência.
Este projeto, contudo, nascia sob o signo da ameaça. O experimento chileno era intolerável para a ordem imperial, tornando-se, desde o primeiro dia, um alvo a ser neutralizado. Este “modus operandi” é o mesmo vigente até os dias atuais: todo projeto que visa tornar independente uma nação da América Latina bate contra o muro da hegemonia dos Estados Unidos. E cada ator internacional — seja China, Rússia, Índia, Brasil, Irã, etc. — que luta para tornar este concerto internacional peça de museu, mesmo que inconscientemente, age como que sob a memória de Allende.
O poder no Chile pertence ao povo chileno
O governo da Unidade Popular não se resumiu à ação institucional no Palácio de La Moneda. Sua força motriz residia na efervescência social que tomou o país, uma verdadeira explosão do poder popular vindo de baixo. Os “cordones industriales”, cinturões de autogestão operária que surgiram em torno de Santiago, foram laboratórios de democracia direta, onde os trabalhadores assumiram o controle da produção para combater o boicote patronal. A reforma agrária, iniciada no governo anterior, foi massivamente aprofundada, expropriando latifúndios e entregando a terra a quem nela trabalhava. Programas sociais icônicos, como a distribuição de meio litro de leite diário para cada criança, combateram a desnutrição crônica e se tornaram símbolos de um Estado que, pela primeira vez, colocava a vida de seu povo como prioridade absoluta.
Todo o mundo que se inquieta com as injustiças sociais deveria assistir ao discurso de Allende na Universidad de Guadalajara, em 1972. É, talvez, um dos discursos mais belos de todo o mundo, tomado por uma verve inigualável, por uma oratória emocionante. A mente de Allende entra em alfa, sua língua em simetria afiada com o Supremo Bem-Estar e conectada com os Povos da América Latina. Sua convocação não é a socialistas, comunistas, cristãos, anticristãos, ateus, políticos ou seja lá quem for: seu discurso é para homens e mulheres de boa vontade. Parafraseando:
“Há milhões e milhões de crianças e jovens passando fome neste momento, milhões e milhões de jovens sem estudo neste momento, fora das salas de aula. É dever de todos nós prover saúde e educação urgentemente a todos estes seres humanos”.
Era muito mais do que Allende falando: era a voz de uma Consciência Maior, avassaladora e planetária, que ecoava através dele. Ele se tornara a caixa de ressonância de uma urgência moral que transcendia fronteiras e ideologias. Este protagonismo popular nacional e mundial, no entanto, aguçou o ódio das classes dominantes. O país se polarizou de forma dramática (como já vimos acontecer no Brasil), com a direita econômica e política, apoiada pela imprensa hegemônica, orquestrando um clima de caos e desabastecimento. Greves de caminhoneiros financiadas por interesses externos paralisaram o país, enquanto o mercado paralelo prosperava como arma de desestabilização do governo Allende.
A engenharia do caos
“Não vejo por que motivo deveríamos ficar parados e assistir a um país se tornar comunista devido à irresponsabilidade do seu próprio povo.” A frase, atribuída a Henry Kissinger (1923–2023), resume a doutrina que selou o destino do Chile. Documentos desclassificados confirmam que a ordem do presidente Richard Nixon (1913–1994) foi explícita: “fazer a economia gritar”. A intervenção estadunidense não foi um apoio pontual, mas uma guerra secreta, multifacetada e implacável, cujo objetivo era criar as condições para um “clima de golpe”.
Além do financiamento a greves de caminhoneiros, a operação incluiu a injeção de milhões de dólares em partidos de oposição e veículos de comunicação, como o jornal El Mercurio, e a articulação direta com militares chilenos dispostos a trair a constituição. O que estarrece é que a receita é quase sempre a mesma, e parece se repetir no século 21, com alguns ajustes pontuais: a grande imprensa provoca um caos de previsões econômicas; estas, por sua vez, se autorrealizam; assim, provoca-se a classe média e a elite; em consequência, invariavelmente, atinge-se os militares — a diferença é que, no século 21, a imprensa tradicional se soma à internet.
O bloqueio de créditos internacionais, principalmente em países que não são produtores ativos de tecnologia, e a manipulação do preço do cobre (economia baseada em monocultura extrativa) asfixiaram a economia chilena. A derrubada de Allende, portanto, não pode ser compreendida sem a análise da sua dimensão geopolítica, um ato de intervenção imperialista para restaurar o controle sobre o que Washington considerava seu “quintal”. Eles têm o 11 de setembro deles, que são as quedas das Torres Gêmeas. Nós, latino-americanos, temos o nosso 11 de setembro, marcado pela morte e o assassinato primeiro de um presidente, depois de uma parcela significativa de militantes de esquerda em vários países da região, tendo o Chile sido alvo de uma das mais brutais ditaduras.

Salvador Allende: “Entrego minha vida ao povo”
O 11 de setembro de 1973 foi a crônica de uma morte anunciada. Ao amanhecer, as Forças Armadas lideradas por Augusto Pinochet (1915–2006) deflagraram a operação golpista. O alvo simbólico e estratégico era o Palácio de La Moneda. Cercado, Allende recebeu um ultimato para se render. Sua recusa foi categórica. Em sua última e histórica alocução, transmitida pela Rádio Magallanes, sua voz ecoou serena em meio ao caos: “Colocado numa transição histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo… Tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser ceifada definitivamente… Sabe-se que, muito mais cedo do que tarde, se abrirão de novo as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor.”
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Pouco depois, os caças Hawker Hunter da Força Aérea chilena bombardearam a sede do governo. A imagem do palácio em chamas tornou-se o ícone universal da morte da democracia. Lá dentro, Allende cumpriu sua palavra. Recusou-se a ser um mártir humilhado. Com o fuzil AK-47 que ganhara de Fidel Castro, deu o último tiro. Um ato final de soberania contra a barbárie.
O Chile tornou-se o laboratório de uma economia da morte
O que se seguiu ao golpe foi um mergulho nas trevas. O Estádio Nacional foi convertido no maior campo de concentração da história do Chile. A tortura, os assassinatos e os desaparecimentos forçados tornaram-se política de Estado, executados pela DINA, a temível polícia secreta. A ditadura não visava apenas eliminar seus oponentes, mas erradicar o “câncer marxista” da sociedade, conforme as palavras dos milicos que emulavam uniformes militares alemães da 2ª Guerra Mundial. Paralelamente ao terror, o Chile foi transformado no primeiro laboratório mundial do neoliberalismo radical.
Os “Chicago Boys” implementaram uma “terapia de choque”: privatizações, desregulação e a pulverização dos direitos trabalhistas. O terror político foi a ferramenta indispensável para impor um modelo econômico excludente. A repressão transcendeu as fronteiras através da Operação Condor, uma rede de extermínio multinacional coordenada pelas ditaduras do Cone Sul, com apoio logístico e de inteligência dos EUA. Aliás, é importante deixar muito claro que, sem a ajuda, coordenação, partilha de inteligência de espionagem, etc., o exército chileno jamais teria ido tão longe.
A História como arma dos povos latino-americanos
Nesta quinta-feira, 11 de setembro de 2025, o dia da infâmia completa 52 anos. O Chile, embora tenha retornado à democracia, ainda carrega as cicatrizes profundas da ditadura. E as carregará por décadas ainda. A Constituição outorgada por Pinochet em 1980, embora reformada, segue vigente, amarrando o país a um modelo que as grandes revoltas populares de 2019 tentaram, sem sucesso completo, derrubar. A luta por memória, verdade e justiça é uma batalha diária. É a luta das mães e avós que ainda procuram seus desaparecidos. É a luta de uma nova geração que redescobre em Allende e na Unidade Popular um projeto de dignidade e soberania mais atual do que nunca.
Anatomia de um golpe I: A história do 11 de setembro no Chile, por Paulo Cannabrava Filho
O legado de Allende não é uma peça de museu. É uma advertência e uma inspiração: a advertência de que a democracia é frágil, e a inspiração de que um outro mundo, mais justo, não é apenas possível, mas necessário. A voz de Salvador Allende, direto do coração em chamas do La Moneda, ainda nos conclama a caminhar. Confesso que, aos 45 anos, tenho um amor profundo por Salvador Allende: por sua coragem, seu destemor, sua intrepidez, a encarnação de uma voz viva que se recusou a abandonar não apenas o Chile, mas a América Latina. De repente, naquele instante de infâmia, quando executado no palácio, não era só o La Moneda que era usurpado, era a Casa Rosada, era o Palácio do Planalto, era o Miraflores, era o Palácio de los López…
Eles mataram Allende, mas a semente que ele lançou germinou uma geração inteira, e não cessa de frutificar, ecoando em Você e em Mim!

