Quando liguei a TV para assistir ao início da fase decisiva do julgamento da tentativa de golpe e ouvi o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes chamar Jair Bolsonaro de “líder da organização criminosa”, confesso que me emocionei, principalmente porque, ao mesmo tempo, lia no rodapé da imagem da Globo a informação de que Donald Trump não “temia” usar força militar contra o julgamento, ou algo assim.
O primeiro dia de votos, nesta terça-feira (9), deixou claro que as ameaças do palhaço que governa o país mais perigoso para a existência do planeta vão cair no vazio, como seu papel na história da humanidade.
Ao contrário do papel reservado a Trump, o longo voto do relator cumpriu o esperado por todos os que defendem um Estado democrático, com todas as ressalvas que se possa fazer a este modelo de democracia vigente.
É inevitável uma comparação com o processo da Lava Jato. Naquele, pessoas foram presas e coagidas pela prisão a fazer delações premiadas que atendessem aos desejos do procurador acusador, Deltan Dallagnol, e do juiz, Sergio Moro, ambos comprovadamente vendidos ao Departamento de Estado dos Estados Unidos (EUA), que visitaram inúmeras vezes durante o processo.
As delações combinadas, forçadas por prisões arbitrárias, foram as únicas “provas” apresentadas, quando a lei deixa claro que os depoimentos em si de delatores não podem ser usados como provas, por haver interesse pessoal dos mesmos no “negócio”.
No caso do presente julgamento do golpe, a delação do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, foi prestada sem pressão ou coação, com o delator em liberdade. Além disso, todas as informações prestadas por ele não constituem as provas dos crimes objeto da ação penal.
As provas foram apuradas em investigações da Polícia Federal (PF), a partir do “roteiro” que compôs a delação. As informações de Mauro Cid foram, uma a uma, comprovadas por depoimentos de testemunhas, gravações obtidas legalmente em celulares de envolvidos, conversas de WhatsApp entre articuladores da tentativa de golpe que foram apagadas por eles, mas restauradas por peritos técnicos da PF, por documentos apreendidos em cumprimento de mandados judiciais, por varreduras em computadores do Palácio do Planalto e do Palácio da Alvorada, por registros oficiais de entradas e saídas nos gabinetes onde a trama golpista foi planejada e parcialmente executada. Enfim, tudo que foi delatado não só foi comprovado, como também levou à obtenção de novas provas.
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O voto de Moraes foi um relato histórico cronológico do plano arquitetado para fraudar o resultado das eleições de 2022 caso Bolsonaro perdesse, comprovado por esse farto material conectado temporalmente pelo relator com discursos de Bolsonaro em comícios, lives e postagens em redes sociais, repercutidas publicamente pelo chamado “gabinete do ódio”. Todo esse material, obtido dentro da lei, com garantia de ampla defesa a todos os acusados, leva à inevitável conclusão de que houve um cuidadoso planejamento com o objetivo de um golpe de Estado que impediria a posse do presidente eleito e garantiria a permanência na presidência do candidato derrotado.
Se Moraes, em seu voto, cuidou do relatório minucioso de todo o processo golpista, o ministro Flávio Dino, que votou em seguida, cuidou de afastar com brilhantismo todos os argumentos jurídicos dos competentes advogados de defesa dos réus, encarregados de defender o indefensável — sendo o principal deles a alegação de que tentativa não consumada não constitui golpe.
Na introdução do voto, Dino ressaltou que os julgadores não estavam ali para fazer um julgamento político com autoritarismo, mas para julgar, como em qualquer outro julgamento, de acordo com a lei. Lei esta, frisou, que não foi feita pelos juízes, mas pelo Congresso Nacional, a quem compete legislar.
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A Constituição, lei maior, e toda a legislação inferior a ela determinam como crime “tentar” abolir o Estado Democrático de Direito e as instituições garantidoras da democracia. Até porque, se o golpe for consumado, toda a ordem jurídica e política anterior a ele será anulada, pois é justamente este o objetivo de um golpe. Não apenas a legislação atual, pós-Constituição de 1988, assim o determina, afirma Dino em seu voto, mas todo o ordenamento jurídico das várias fases da história do Brasil, incluindo a Constituição de 1967 imposta pela ditadura militar, o Ato Institucional nº 5 (AI-5) e a Lei de Segurança Nacional, igualmente instituídas pelo regime autoritário.
Em seguida, demonstrou que o julgamento pelo STF, em foro privilegiado, mesmo Bolsonaro não ocupando atualmente a presidência, não é um casuísmo inventado agora para prejudicar o réu, mas jurisprudência há décadas no STF. Mudá-la agora, para o julgamento do ex-presidente e sua organização criminosa, seria, isto sim, um casuísmo inaceitável.
Cuidou também de defender a legalidade e a legitimidade das investigações originadas na delação premiada, conforme abordado no início desta análise, para votar no mérito com o relator — embora tenha se manifestado antecipadamente sobre a dosimetria da pena, entendendo que três dos réus, incluindo o General Heleno tiveram participação menor na trama.
Dino analisou ainda a possibilidade de anistia, que vem sendo objeto de discussão na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, deixando claro que o STF tem, historicamente, a interpretação de que indultos — perdão para condenações criminais, no caso tratado como anistia — não são cabíveis para crimes de tentativa de golpe de Estado. Nesta fundamentação, citou textualmente votos anteriores, em processos diversos, de todos os demais julgadores e ministros do STF, anteriores à sua própria posse no tribunal, incluindo o ministro Luiz Fux.

O julgamento foi interrompido pelo adiantado da hora, ficando para esta quarta-feira (10) o voto de Fux, que optou por colocar em cheque a legitimidade do próprio STF em julgar o caso. Há dias se especulava que Fux, bolsonarista declarado, pediria vistas, o que poderia interromper o julgamento por 90 dias, retornando apenas dez dias antes do recesso do Judiciário, o que jogaria o julgamento para o ano que vem — dando tempo para nova tentativa de golpe através da aprovação do Projeto de Lei (PL) da anistia, criando novo conflito institucional entre os poderes da República.
Ninguém pode afirmar nada sobre o futuro, que será sempre uma possibilidade. Dentre tantas, mesmo que Fux peça vista do processo, os demais ministros podem, pelo regimento, antecipar seus votos — o que anteciparia o resultado, embora ele só possa ser proclamado após o retorno da vista com o voto faltante.
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Outra possibilidade, que não exclui a primeira, é a aprovação da anistia nesses 90 dias proporcionados pela eventual manobra de Fux. Nesse caso, certamente Lula vetaria a anistia, retornando a mesma ao Congresso para apreciação do veto em sessão conjunta das duas casas. O presidente teria 30 dias para sancionar ou não, período em que o STF poderia apreciar nova Ação de Declaração de Constitucionalidade ajuizada por setores ligados ao governo.
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A única previsão possível neste momento é que teremos um período de conturbação política neste ano que precede as decisivas eleições de 2026 — e que o funcionamento normal das instituições democráticas vai depender muito mais da mobilização popular para defendê-las do que de decisões judiciais.

