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Emendas pix: anistia a Bolsonaro é jogo bilionário entre Centrão e extrema-direita

Certa vez, pelos idos de 2004, estive em Brasília (DF), a fim de conhecer o sonho máximo do modernismo brasileiro, gestado pelo Presidente Juscelino Kubitschek (1956–1961) e por Oscar Niemeyer (1907–2012). Confesso que minha reação foi de incômodo: ao mesmo tempo em que achei tudo monumental, algo me dizia que aquela cidade não fora projetada pensando em seres humanos, mas em poder, apenas. É uma constatação que muitos fazem, não é nova. Brasília é como se fosse um time de futebol: se adere por paixão — ou se ama, ou se odeia.

Neste mês de setembro corrente, o Brasil prende a sua respiração voluntariamente (uma diferença brutal do que ocorrera com a covid-19 e a negligência à pandemia pelos que estão sendo julgados), em meio ao início, no Supremo Tribunal Federal (STF), do julgamento histórico do “núcleo duro” dos ataques de 8 de janeiro. Porém, enquanto o ex-presidente Jair Bolsonaro era dirigido ao banco dos réus, uma engrenagem paralela e de poder avassalador era acionada em Brasília.

Não se trata de uma metáfora. É a mais pura e crua realidade: o Congresso Nacional opera um sistema que transforma o Orçamento da União em um balcão de negócios, e a anistia para os crimes contra a Democracia tornou-se o produto mais cobiçado para uma suposta anistia “ampla, geral e irrestrita” para a cúpula do golpe, como diria o ditador de infeliz memória Ernesto Geisel (1974–1979).

A proposta, que ganhou força no Centrão, visa conceder perdão amplo aos envolvidos nos atos, e a confiança na sua aprovação é explícita. Em declaração na véspera do início do julgamento, o presidente nacional do Partido Liberal (PL), Valdemar Costa Neto, garantiu que “a oposição já reúne votos suficientes no Congresso para aprovar a medida, para beneficiar inclusive o ex-presidente Jair Bolsonaro”. Já haveria algo em torno de 320 a 330 votos dos 513 parlamentares do Congresso.

A articulação é uma operação política em pleno andamento. O líder do PL na Câmara, deputado Sóstenes Cavalcante (RJ), e outros aliados vêm pressionando o atual presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), a pautar a matéria imediatamente após o fim do julgamento do STF. A ideia é consolidar uma coalizão em torno da anistia, unificando votos de partidos do Centrão — PL, Progressistas (PP), União Brasil, Republicanos, Partido Social Democrático (PSD), et caterva.

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O apoio à estratégia foi selado pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) em jantar com Sóstenes Cavalcante e o pastor Silas Malafaia. Esta negociação aberta expõe a mecânica dos intestinos do poder em Brasília, onde a governabilidade e a impunidade são tratadas como mercadorias precificadas e pagas com a arma mais potente que o Congresso forjou para si: o controle de bilhões de reais do orçamento através de um projeto de engenharia jurídica conhecido como “emendas PIX”, que constitui hoje, inequivocamente, a nossa maior desgraça política.

A arma apontada para a cabeça de Lula e Haddad

Para entender a confiança do Centrão em sua capacidade de impor uma anistia contra a vontade do Judiciário, é preciso dissecar a arquitetura legal que transformou o Orçamento em seu refém. Tudo começa com a Emenda Constitucional nº 105/2019, aprovada em dezembro daquele ano, que inseriu o Art. 166-A na Carta Magna, criando as “transferências especiais”. O texto é técnico, mas sua finalidade é devastadora:

“§ 1º Os recursos transferidos na forma do caput deste artigo não integrarão a receita do Estado, do Distrito Federal e dos Municípios para fins de repartição e para o cálculo dos limites da despesa com pessoal”.

A tradução deste dispositivo legal é a criação de uma verba fantasma. O dinheiro sai do radar dos principais mecanismos de controle da União, não compondo a receita formal dos entes federados e, portanto, não precisando seguir todas as amarras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000). A EC/105 é a arma; a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a munição. Em 2024, foram destinados R$ 7,7 bilhões para essas transferências diretas – sem projeto, sem convênio, sem prestação de contas prévia. Para 2026, são previstos R$ 52,9 bilhões em emendas parlamentares, e uma fatia bilionária pode seguir pelo mesmo duto de baixa ou nula fiscalização.

O esquema é simples: o parlamentar insere a emenda, a União transfere o valor diretamente para a conta do município e o prefeito o recebe sem qualquer vinculação, podendo gastá-lo em categorias genéricas onde o rastro se perde. Esta não é uma teoria, mas uma prática investigada. No caso do “Kit Robótica” em Alagoas, recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) foram desviados via licitações fraudulentas em municípios aliados ao grupo político do então presidente da Câmara, Arthur Lira, que iniciou a consolidação deste poder na governabilidade com Bolsonaro. A Controladoria-Geral da União (CGU) calculou um prejuízo de R$ 4,2 milhões apenas no município de Canapi (AL).

Cannabrava | Anistia como chantagem: o Congresso contra o Judiciário em 2025

Precisamente aqui reside uma maldade inaudita destas emendas. Este amigo que vos escreve já foi professor da rede estadual de ensino, no município de Niterói (RJ). Havia ar refrigerado na sala, mas, por falta de manutenção, as duas máquinas ficavam desligadas no período do alto verão de fevereiro, março e até meados de abril, o mesmo no final do período, novembro, dezembro. Salas de informática, na escola onde fui professor de História, não tinham computadores funcionais para as crianças e adolescentes aprenderem a utilizar a máquina. O refúgio, então, era o TikTok. Reclamam das crianças e adolescentes que se entopem de conteúdos inúteis nas redes, mas não investigam as causas. Escolas mal equipadas da rede pública, que já deveriam, há tempos, todas elas, ter sido federalizadas, e assim retiradas de prefeituras e governadores sem compromisso com educação!

Os operadores do sistema: de Valdemar a Alcolumbre

A articulação pela anistia é liderada por figuras que dominam essa máquina, como Valdemar Costa Neto (PL), cuja ênfase no apoio carrega forte peso simbólico. Condenado pelo STF em 2013 no processo do Mensalão (AP 470) por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, Valdemar cumpriu parte da pena e teve sua punição extinta pelo STF em 2016. Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Mensalão em 2005, ele admitiu ter recebido R$ 6,5 milhões do esquema de Marcos Valério. Mais recentemente, em fevereiro de 2024, foi detido em flagrante por porte ilegal de arma e usurpação de minério. Trata-se de um dirigente cujo currículo demonstra vasta experiência em navegar crises, personificando a resiliência do sistema que agora opera para salvar Bolsonaro. Valdemar Costa Neto é desses personagens que, um dia, ganharão teses acadêmicas e verbetes em compêndios de História do Brasil (quer em formato físico ou e-books). Nariz aquilino, como de águia, boca curta, fala mansa, olhar compenetrado, postura sempre ereta. O mundo desaba sob seus olhos, mas ele segue impassível, como se nada estivesse acontecendo. Zero carisma. Produto de um curral eleitoral altamente adestrado. Não possui qualquer ideologia a não ser aderir ao governo, seja ele qual for, em busca de pequenos e médios cargos, e trafegar por influência.

No fim de agosto, este personagem disse que, no futuro, Bolsonaro seria comparado à figura de Che Guevara (1928–1967). Veja a que nível de indigência moral chegamos. Você, leitor, pode conferir estas palavras a seguir:

Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) acaba de anunciar que vai elaborar uma proposta alternativa à anistia ampla, prevendo apenas a redução de penas para os envolvidos de “menor gravidade” e mantendo a condenação de Bolsonaro. Alcolumbre declarou: “Eu vou votar o texto alternativo. É isso que eu quero votar no Senado”. A proposta foi imediatamente rechaçada por bolsonaristas como o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que declarou não existir “anistia meia-bomba”, defendendo um perdão “amplo, geral e irrestrito”. Vejam como essa gente utiliza o vocabulário da ditadura, e especificamente do ditador Geisel, já citado neste texto. Eles têm o DNA do que Leonel Brizola (1922–2004) um dia disse a Maluf num debate político na TV Bandeirantes, em 1989: “O Sr. é um filhote da ditadura, o Sr. não pode falar nada, o Sr. é um filhote da ditadura!”. Às vezes me dá uma saudade e uma imensa frustração pela figura de Brizola não ser tratada como se deve neste país, mas isto é assunto para outro artigo.

Os limites constitucionais e a muralha do STF

Ministros do STF já advertem que qualquer anistia geral aos crimes de 8 de janeiro serão barradas por inconstitucionalidade. O precedente é o caso do indulto a Daniel Silveira. No julgamento, a então relatora Ministra Rosa Weber apontou que “a concessão de perdão a aliado por simples vínculo de afinidade político-ideológica não se mostra compatível com os princípios constitucionais de impessoalidade e moralidade”. O ministro Dias Toffoli reforçou que não haveria coerência interna na Constituição se, ao mesmo tempo que considera crimes contra o Estado Democrático imprescritíveis, permitisse seu perdão por lei posterior. O presidente do STF, Ministro Luís Roberto Barroso, foi ainda mais direto, declarando em agosto de 2025 que, “do ponto de vista jurídico, anistia antes de julgamento é uma impossibilidade”. A base legal para a recusa reside na própria Constituição Federal (Art. 5º, inciso XLIII), que proíbe anistia para terrorismo, e na Lei nº 14.197/2021, que tipificou os crimes contra o Estado Democrático de Direito (arts. 359-L e 359-M do Código Penal) sob o princípio de sua gravidade excepcional.

Enquanto isso, a opinião pública majoritariamente rejeita a medida. Levantamento Datafolha de agosto de 2025 apontou que 55% da população é contra qualquer anistia ampla, contra 35% favoráveis. Mesmo o atual presidente da Câmara, Hugo Motta, admitiu que “não há ambiente” para perdoar “quem planejou matar pessoas” na organização dos atos.

Querem transformar este país num Parlamentarismo às avessas, fazendo a “Roda da História” retroceder ao Segundo Império (1840–1889). (Foto: Andressa Anholete / Agência Senado)

O desenrolar desse embate definirá não apenas o destino de Bolsonaro, mas o próprio limite do poder no Brasil. A tensão entre a força dos votos no Congresso, comprada com o orçamento, e a rigidez dos vetos constitucionais no STF está posta. O que se assiste não é um debate, mas a revelação da caixa preta do poder: uma disputa para definir se a República será regida pelo império da lei ou pelo balcão de negócios. Este embate põe uma bala engatilhada permanentemente na cabeça do Presidente Lula, o impede de fazer planejamentos de longo prazo de investimentos no Brasil, como foi possível, particularmente, em seu segundo mandato com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), capitaneado pela Presidenta Dilma Rousseff.

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Querem transformar este país num Parlamentarismo às avessas, fazendo a “Roda da História” retroceder ao Segundo Império (1840–1889). O termo “às avessas”, porém, se devia ao fato de o imperador D. Pedro II utilizar e abusar do Poder Moderador a todo momento, impedindo o Gabinete de atuar e escolhendo, ele mesmo, o presidente do Conselho de Ministros. Se nada for feito por nós, brasileiros e brasileiras, logo teremos o sonho de um Antônio Carlos Magalhães e de um Roberto Marinho concretizados: o varejo puro, através do lóbi do dinheiro, controlando totalmente o executivo — se é que este existirá formalmente —, enquanto o Judiciário tem suas decisões sendo revistas e mudadas por um Parlamento pulverizado em tantas siglas, que diante da inviabilidade do consenso, prioriza o interesse próprio.

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