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2º Encontro Nacional do MAM: por um Brasil livre da mineração predatória e do neocolonialismo energético

Estive em Fortaleza entre os dias 24 e 28 de agosto de 2025 acompanhando de perto o 2º Encontro Nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Foram cinco dias de intensos debates, plenárias e atos de rua, que reuniram mais de 1.200 militantes de 17 estados brasileiros. O encontro reafirmou a centralidade da luta contra a mineração predatória, denunciou o neocolonialismo energético e trouxe pautas urgentes como gênero, raça e soberania popular.

Criado em 2012, o MAM nasceu da articulação de militantes oriundos de outros movimentos sociais, comunidades atingidas e coletivos populares. Seu objetivo é enfrentar o problema mineral brasileiro: um modelo de exploração subordinado ao capital internacional, que transforma o país em exportador de matérias-primas e destruidor de territórios.

Ao longo de 13 anos, o movimento se consolidou em mais de 15 estados, denunciando tragédias como Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambas provocadas pela Vale, além da catástrofe causada pela Braskem em Alagoas, onde milhares de famílias foram expulsas de suas casas devido ao colapso do solo. Esses episódios se tornaram símbolos da irresponsabilidade empresarial e da cumplicidade estatal.

Com toda essa base, o MAM realizou o evento em Fortaleza, no Campus do Pici da Universidade Federal do Ceará (UFC). O encontro também contou com convidados internacionais da África e da América Latina, em um espaço de debates, oficinas e plenárias que aprofundaram a análise sobre o modelo mineral brasileiro, a falsa transição energética e a necessidade de consolidar territórios livres de mineração.

Neocolonialismo energético e a falsa transição verde

No encontro, ficou claro que a chamada transição energética não pode ser vista de forma ingênua. Li e ouvi com atenção as falas que reforçaram algo já presente no livro Energia e Neocolonialismo – Politizando o Clima (Fundação Rosa Luxemburgo + CPDA/UFRRJ, 2024): a estratégia do Norte Global tem sido “descarbonizar o consumo no Norte promovendo a destruição ampliada dos ecossistemas no Sul”.

Na foto, MAM em ato denunciando a obra de alargamento de estradas promovida pela mineradora Herculano. (Foto: Reprodução/ Instagram MAM)

Isso significa que, enquanto EUA e União Europeia projetam cortar emissões, ampliam sua dependência de minerais críticos extraídos em países como o Brasil, o Chile e a Bolívia. As baterias de carros elétricos, por exemplo, demandam muito mais lítio, níquel e cobre do que veículos convencionais, ampliando a pressão sobre territórios já fragilizados.

A retórica verde do Norte Global serve como cortina de fumaça para legitimar uma nova etapa de espoliação. Os acordos climáticos internacionais, em vez de reconhecerem a dívida histórica dos países industrializados com o planeta, deslocam a responsabilidade para nações do Sul, transformando-as em zonas de sacrifício ambiental. Sob o rótulo de “energia limpa”, expande-se um modelo extrativista que não questiona o padrão de consumo hiperintensivo de recursos, mas o reafirma de maneira ainda mais desigual e violenta.

No Brasil, essa lógica tem encontrado terreno fértil. Projetos de lítio no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, são apresentados como promessa de desenvolvimento regional, mas na prática significam novas ondas de expulsão de comunidades tradicionais e contaminação de bacias hidrográficas. A mineração para atender à indústria global de carros elétricos repete a velha fórmula colonial: o país fornece matéria-prima barata, enquanto a tecnologia, os lucros e a “sustentabilidade” ficam concentrados no Norte. O discurso da modernidade verde escamoteia a permanência de um modelo econômico que coloca o Brasil em posição de dependência estrutural.

O 2º Encontro do MAM deixou evidente que a transição energética só terá sentido se for popular e soberana. Isso implica discutir não apenas que minerais serão explorados, mas quem decide sobre eles, para quê e em benefício de quem. Significa enfrentar a ideia de que o subsolo é mercadoria e afirmar que ele deve estar a serviço da vida. Ao denunciar o neocolonialismo energético, o movimento expõe a contradição entre a promessa de um futuro sustentável e a continuidade de práticas coloniais que transformam territórios inteiros em zonas de destruição.

Mineração, conflitos e racismo ambiental

O problema não é apenas teórico. Entre 2020 e 2023, foram registrados 348 conflitos em 249 localidades do Brasil ligados à mineração para a transição energética, ainda segundo o relatório “Politizando o Clima”. Só na Amazônia, existem 5.046 pedidos de mineração, dos quais 1.205 incidem sobre 137 terras indígenas.

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Outro dado alarmante: estão em análise 96 projetos de energia eólica offshore no litoral brasileiro. Um dos casos mais emblemáticos é o de Camocim, no Ceará, onde comunidades pesqueiras denunciam a tentativa de expulsão para instalação de turbinas, em um processo marcado por racismo ambiental.

O rompimento da barragem em Mariana (2015) destruiu o Rio Doce e matou 19 pessoas. Em Brumadinho (2019), 272 pessoas perderam a vida. Em Alagoas, a Braskem afundou bairros inteiros de Maceió, deixando mais de 60 mil desabrigados. Esses episódios não são acidentes, mas resultado direto de um modelo que coloca o lucro acima da vida, sustentado por governos que flexibilizam legislações ambientais e ignoram o direito das comunidades.

Esses números revelam a face mais brutal da chamada transição energética. O que se apresenta como avanço tecnológico no Norte Global significa, na prática, devastação de territórios no Sul. O racismo ambiental, conceito central nesse debate, não é exceção: populações negras, indígenas e periféricas são sistematicamente colocadas em áreas de maior risco, expulsas de suas terras e silenciadas em processos decisórios. Em Camocim, como em tantas outras localidades, não há consulta livre, prévia e informada, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mas sim a imposição de projetos que privilegiam empresas transnacionais em detrimento da vida comunitária.

Pautas de gênero e raça como estruturantes

Diferentemente do que muitos poderiam supor, o 2º Encontro não foi apenas sobre mineração. Houve espaços de formulação exclusivos para mulheres e exclusivos para homens, reconhecendo que o enfrentamento ao capital mineral precisa dialogar também com o enfrentamento ao patriarcado e ao racismo.

Nos relatos do espaço das mulheres, ficou evidente como a mineração impacta de forma diferenciada as mulheres negras e indígenas: a destruição dos rios significa aumento do trabalho doméstico, enquanto a perda de territórios representa também a perda de espaços de reprodução cultural e espiritual. Militantes apontaram que, quando um rio é contaminado ou destruído, são elas as primeiras a sentir o peso da tragédia, seja na busca por água, seja no cuidado com a saúde das famílias. Denúncias nesse espaço reforçaram que a luta contra a mineração é também uma luta contra o patriarcado, já que a lógica mineral reproduz formas históricas de exploração masculina sobre corpos e territórios.

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Já no espaço dos homens, as falas giraram em torno da necessidade de repensar a masculinidade e enfrentar práticas machistas que, muitas vezes, enfraquecem as lutas populares. Reconhecer que esses padrões atravessam até mesmo os movimentos sociais foi apontado como passo fundamental para a construção de um movimento verdadeiramente popular. Ao incluir gênero e raça como dimensões centrais, o MAM reafirma o caráter pedagógico de sua luta: disputar o subsolo, mas também transformar relações sociais, mostrando que soberania popular só se constrói de forma coletiva e inclusiva.

Como destacou Helenna Castro, comunicadora popular e agente da Comissão Pastoral da Terra da Bahia (CPT-BA): “Mesmo com toda carga que o patriarcado coloca em nossas vidas, o silenciamento, as violências, a invisibilização dos diversos trabalhos, seguimos firmes em nossas posturas e princípios, protegendo e lutando por nossos territórios, nossas vidas e nossos corpos.” O depoimento de Helenna resume a atmosfera desse espaço, pois não se tratou apenas de denunciar a violência patriarcal, mas de reafirmar a centralidade das mulheres como guardiãs da vida e da resistência popular. Afinal, como diz um dos gritos do movimento “onde tem mineração tem mulheres em luta!”.

Plenária das mulheres no 2º encontro nacional do MAM (Foto: Marielle Souza)

Crítica ao governo federal

O 2º Encontro também escancarou a contradição do atual governo federal. Enquanto o discurso oficial fala em transição energética justa e desenvolvimento sustentável, na prática, a política mineral continua refém de interesses empresariais. O governo aprovou recordes de licenciamento para mineração em 2024 e tem incentivado megaprojetos de lítio e hidrogênio verde para exportação, em cooperação com países como a Alemanha.

Essa postura reforça a condição primário-exportadora do Brasil e impede a construção de soberania popular. Como diz a Carta de Fortaleza, fruto do encontro: “Submetida à lógica especulativa e espoliativa do capital internacional, a economia funciona como um moinho satânico que gira para maximizar a extração de mais-valia e retroalimentar o desenvolvimento do subdesenvolvimento”.

A contradição do governo é gritante. Enquanto defende nos fóruns internacionais uma transição energética “justa”, no território nacional aprofunda a dependência mineral com incentivos fiscais, licenciamento acelerado e acordos internacionais que comprometem a soberania. O caso da cooperação com a Alemanha no hidrogênio verde ilustra bem isso: o Brasil assume os custos ambientais e sociais da produção, enquanto a Europa garante o benefício energético. Ao priorizar esse tipo de projeto, o governo reedita o velho papel do país como exportador de commodities, só que agora pintadas de verde.

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A ausência de mecanismos de proteção eficazes agrava esse quadro. Órgãos como a Agência Nacional de Mineração (ANM) e o Ibama, enfraquecidos por cortes orçamentários e pela captura corporativa, têm agido mais como homologadores do que como fiscalizadores. Isso demonstra como o Estado brasileiro segue sendo peça-chave na reprodução de um modelo colonial de exploração, disfarçado de modernização. Ao conectar esses dados com a realidade concreta dos territórios, o MAM denuncia não apenas a mineração em si, mas todo o arcabouço institucional que garante sua continuidade.

Essa postura, além de comprometer o meio ambiente e as comunidades, fragiliza a própria democracia. A ausência de diálogo com movimentos populares, como o MAM, mostra que a transição em curso é pensada de cima para baixo, sem participação popular. Quando associamos essa crítica ao legado das tragédias e às denúncias de racismo ambiental, o cenário se torna ainda mais grave: o Estado brasileiro continua a operar como garantidor do capital mineral, mesmo sob um governo que se apresenta como progressista. A dissonância entre discurso e prática é uma das grandes batalhas políticas que emergem do 2º Encontro do MAM.

Carta de Fortaleza como síntese política

O 2º Encontro Nacional do MAM terminou com a leitura coletiva da Carta de Fortaleza, documento que reafirma o compromisso em lutar por territórios livres de mineração, democratização da renda mineral e controle popular do subsolo.

“A única luta que se perde é aquela que se abandona. E nós nunca, nunca, nunca abandonamos a luta.” A frase de Pedro D’Andrea, dirigente nacional do MAM, ecoou em uníssono no último dia do encontro, quando marchamos de vermelho pelas ruas de Fortaleza. Eu estava lá, entre os cerca de 1.200 militantes que partiram da Estátua de Iracema Guardiã rumo ao Palácio da Abolição.

Altos lucros, baixo desenvolvimento: o saldo da mineração que empobrece o Brasil

Foi impossível não me arrepiar diante daquele mar de bandeiras. Um ato histórico, que colocou a mineração no centro do debate público e mostrou que o movimento carrega uma potência que não pode mais ser ignorada. O governador Elmano de Freitas (PT), que tem trajetória nos movimentos sociais, se recusou a receber os militantes. O gesto mostrou a distância entre a retórica de um governo dito popular e a prática de quem ainda insiste em ceder ao capital mineral.

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Takak Xikrin, liderança indígena do sudeste do Pará, resumiu o drama vivido por seu povo: “O povo Xikrin está 98% contaminado por metais pesados oriundos da mineração no Pará. Estamos aqui pra contribuir com a luta do povo do Ceará, pra contribuir com a luta contra a mineração. Ela só traz morte, prejuízo pra nossa biodiversidade, pras nossas florestas”.

Ato político no 2º encontro nacional do MAM (Foto: Marielle Souza)

Assim, o 2º Encontro Nacional do MAM mostrou que soberania não é um conceito abstrato, mas prática concreta de resistência, construída com sangue, suor e memória coletiva. Enquanto o governo insiste em repetir velhas receitas de dependência primário-exportadora e em vender a transição energética como salvação, os povos organizados apontam o óbvio que o poder insiste em negar: não haverá futuro sem enfrentar o capital mineral. Fortaleza foi testemunha de que a luta está viva, radical e popular.

Lutar pelo território, controlar o subsolo!

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