A voz do Papa Francisco (1936 – 2025) se calou às 7h:35 (horário de Roma), nos meses iniciais da Primavera italiana, em 21 de Abril. Sua morte fora anunciada pelo Cardeal Kevil Farrell (1947), que, em conformidade com o rito, se tornava o Cardeal Camerlengo da Igreja Católica, o responsável por gerir a nau de Pedro, segundo o costume, num período subsequente à morte de um Papa.
Aquela voz que acabara de se calar, que até às vésperas de sua morte ainda era emitida com a força de um único pulmão, se fez ouvir com uma audácia peculiar no seio da Igreja Católica e no mundo, como poucas vezes um pontífice costuma usar. Os gestos, porém, precederam a própria voz. No dia 13 de março de 2013, no crepúsculo da tarde, surge no balcão do Palácio Apostólico o argentino Jorge Mario Bergoglio, primeiro jesuíta a ocupar o cargo de chefia de milhões de fiéis de uma das mais antigas instituições perenes do que se chama “mundo ocidental”. O ocupante do cargo não era um ocidental clássico, e tomou algumas licenças dos protocolos que só o poder do cargo em que acabara de ser investido permitiria.
Recusou os símbolos de um poder que remontava à Baixa Idade Média, tão amplamente ostentados por Inocêncio III (1198 – 1216) no mesmo período. Tornou-se uma anedota nos salões palacianos do Vaticano a sua frase “o carnaval acabou” [1], dita quando os cerimoniários vieram investi-lo das vestes do poder soberano do metropolita da cidade de Roma e do Vigário de Cristo na Terra, títulos que o papado ostenta até os dias atuais. Estamos, portanto, falando de um estilo que precedeu até mesmo a primeira palavra que seria proferida para a multidão que aguardava o primeiro Papa da América Latina diante da Colunata de Bernini.
O pontificado iniciado em 2013 não foi urdido apenas por uma santidade advinda de um homem com os olhos na imanência, viria de um religioso com os dois pés plantados na realidade da política portenha. Enquanto a prudência curial historicamente aconselha a não tocar nos mecanismos financeiros que sustentam a máquina da Igreja, Francisco ignorou essa cautela ao declarar textualmente: “Ah, como eu gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres!” [2]. Não era uma frase para criar manchetes favoráveis, seria o próprio Leitmotiv daquele pontificado.
Francisco se transmutou numa máquina de produção de significados desde o primeiro dia de seu pontificado, antes de completar 90 dias. Na Quinta-feira Santa, que precede a Páscoa, não lavou os pés, imitando o gesto de Jesus, de homens e mulheres na Basílica de São João de Latrão: ele se dirigiu até a penitenciária Casal del Marmo e lavou os pés de 12 detentos, dentre eles mulheres e muçulmanos. Francisco utilizava verbos que continham uma espécie de convocação de urgência: “sair”, “encontrar”, “tocar”, o nosso escopo se limita a uma análise das atitudes papais em seus 90 dias, mas se fossem em mais 30 dias, poderíamos fotografar Francisco em Lampedusa, em julho de 2013, gritando pelos refugiados, a maior crise de imigração do mundo à época.
Frei Betto | Polarização, progressismo, legado de Francisco: os desafios do papa Leão XIV
Leão XIV – O Papa do silêncio
Após 17 dias de luto para os católicos, assim como para homens e mulheres de boa-vontade, que reconheceram em Francisco um homem bom, possuidor de genuína vontade de mudanças de um sistema neocolonial e neoliberal profundamente injustos, o Colégio de Cardeais escolhe Robert Prevost (1955), estadunidense de nascimento, proveniente de Chicago, capital do Estado de Illinois, nos EUA, e pertencente à Ordem de Santo Agostinho. Durante 30 anos, Prevost respirou o ar do bairro de South Side, área de presença operária de Chicago.
Em 1977, resolve se tornar religioso e ingressa na congregação agostiniana; conforme o carisma missionário da ordem, é enviado a Chulucanas, em Piura, no Peru, em 1985. O próprio Papa Francisco o tornou bispo em 3 de novembro de 2014, recebendo a dignidade episcopal em Roma, um mês após a nomeação, em dezembro do mesmo ano.
Leão XIV não foi um agostiniano comum: galgou o posto máximo de sua congregação em 2001, sendo nomeado Prior Geral da Ordem, cargo que ocupou até 2013; em 2014, fora nomeado bispo de Chiclayo, e em 30 de Janeiro de 2023, se tornou Prefeito do Dicastério para os Bispos — este cargo também foi confiado pelo Papa Francisco, sendo peça chave na engrenagem da Igreja Católica.
O posto é responsável pelas nomeações episcopais no mundo inteiro, portanto, constitui-se num trabalho lento e meticuloso, voltado para a administração intensa de papeladas e comunicações. Nomear um bispo é um trabalho que exige ouvir o Núncio apostólico, a comunidade e o histórico do candidato.
É preciso resistir às objeções políticas de governos locais para que o candidato não alcance o cargo e a pressão de cardeais que interferem nesse tabuleiro político que não é para amadores. Requer homens talhados para as cadeiras de espaldar alto dos escritórios.
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O Sul Global se pergunta: onde está a voz que poderia se dirigir a Washington com autoridade máxima, como nativo e eleitor que foi, daquele país, como a autoridade com lugar de fala privilegiado para alçar sua voz urbi et orbi e atingir o coração das injustiças da “guerra tarifária”? Subitamente, com o desaparecimento de Francisco da arena de luta, o campo de batalha global perdeu aquela voz que não tinha divisões armadas, mas um poder movido pelo rebanho de mais de um bilhão de fiéis, e uma história de dois mil anos que a escuda em quaisquer discussões diplomáticas.
Ser pró-Sul Global não constitui ativismo ideológico, é o cumprimento do papel da Igreja
Quer se concorde ou não com o polonês Karol Wojtyła (1978 – 2005), uma vez eleito João Paulo II, iniciou seu pontificado com uma força política avassaladora. Em menos de 90 dias, os contemporâneos se lembrarão que interveio numa querela entre Argentina e Chile pelo Canal de Beagle que poderia ter redundado numa guerra entre estes dois países.
O hiperconservador Joseph Ratzinger (2005 – 2013), o alemão responsável, de 1982 até 2005, pelo Antigo Tribunal do Santo Ofício – Prefeitura da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, feito Bento XVI, demarcou, em menos de 90 dias, a linha vermelha que a Igreja não deveria ultrapassar, o que o próprio chamou de “ditadura do relativismo”. O seu inimigo foi identificado, projetado e atacado. Bento XVI fora, desde suas vestes, que eram parte de sua performance de poder, até a sua práxis como pontífice, o arquétipo de um Papa dirigido para tornar a Igreja à ortodoxia de uma interpretação do Concílio Vaticano II (1962 – 1965), segundo o que acreditava ser a correta interpretação dos textos. Até o Ecumenismo religioso, tão abraçado por João Paulo II, fora freado por Bento XVI. Conservadores ou progressistas, os Papas, em menos de 90 dias, traçam um programa de governo, por assim dizer, visível, e já definem aliados e adversários.
O último exemplo que não poderia faltar em ação papal em menos de 90 dias é o caso de Angelo Roncalli (1958 – 1963), o Papa João XXIII. Em 25 de janeiro de 1959, anunciou o maior abalo sísmico de que se tem notícia, até o presente momento, na Era Moderna da Igreja Católica: a convocação do Concílio Ecumêncio Vaticano II (1962 – 1965).

A conclusão parece nítida: entre conservadores e progressistas, Leão XIV parece ter rompido um padrão num mundo, talvez, mais convulsionado do que seus predecessores herdaram: o padrão do silêncio vazio, das palavras diplomáticas, da exortação sem um sentido claro de combate, genéricas, monocórdicas, que parecem soar o tom de uma nota que deseja ser harmônica com todos – até com os opressores. Infelizmente, porém, querer agradar a todos. Parece ser uma receita perfeita de um chef de cozinha para não agradar nenhum dos comensais.
O palimpsesto Leão XIV reside justamente na constatação acima. O Colégio cardinalício elegeu um homem de escritório para comandar um mundo que precisa de um missionário ativo. Essa longa carreira em gabinetes de poder parece ter moldado o caráter do novo Papa, ao fazer ouvidos moucos ao enorme lobby de influência no Vaticano para a escolha de um Bispo com contatos com o poder local em cada país – eclesiais e políticos. Leão XIV tomou o hábito de fumar o cachimbo preenchido por uma substância de introspecção intensa. E, como diz o ditado, o hábito do cachimbo acaba por entortar a boca: infelizmente, para piorar a tragédia do mundo, que precisa de um Papa atuante em favor preferencial dos pobres.
Notas
[1] IVEREIGH, Austen. **O Grande Reformador**: Francisco, o Papa Radical. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
[2] FRANCISCO, Papa. Discurso do Santo Padre Francisco aos representantes dos meios de comunicação social. Vaticano, 16 mar. 2013. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2013/march/documents/papa-francesco_20130316_rappresentanti-media.html. Acesso em: 6 ago. 2025.

