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CAFÉ COM VODKA | 50% de tarifas, 100% de mudança: uma encruzilhada se abre à política externa do Brasil

A coluna CAFÉ COM VODKA é produzida pelo Centro de Integração e Cooperação entre Rússia e América Latina no Brasil (CICRAL Brasil) em parceria com a Diálogos do Sul Global.

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O anúncio de Donald Trump sobre a imposição de tarifas de 50% aos produtos brasileiros, entre outras sanções, caiu como uma bomba nas elites política e econômica do Brasil e também teve ampla repercussão nas imprensas brasileira e internacional. A adoção dessa medida pode ter consequências graves para o setor produtivo brasileiro, especialmente considerando que os Estados Unidos representam o segundo maior parceiro comercial do país, correspondendo a 12% do total das exportações nacionais. Ironicamente, essas são as mesmas elites que historicamente mantêm alinhamento com Washington e que, até então, apoiavam a agenda ideológica do presidente estadunidense.

Ainda que haja um recuo do governo Trump, a medida certamente provocará efeitos econômicos significativos no Brasil, mas seus impactos políticos podem ser ainda mais profundos, pois conferiram ao terceiro mandato de Lula o potencial de recriar uma narrativa comum sobre soberania nacional e nacionalismo, além de impulsionar a parceria com os países do Brics+. Mais do que isso, as reações dessa elite podem aglutinar internamente uma resposta conjunta ao unilateralismo estadunidense.

Historicamente, duas questões centrais têm marcado a política externa brasileira em relação a Washington: a primeira refere-se aos constrangimentos impostos pelos Estados Unidos sobre sua “tradicional zona de influência”, nomeadamente a América Latina; a segunda relaciona-se aos alinhamentos político-ideológicos entre os dois governos de turno. Essas dinâmicas repercutem diretamente na projeção internacional do Brasil e em seu alinhamento estratégico com outros parceiros econômicos e políticos. Não é segredo que a postura internacional dos anos iniciais do terceiro mandato do governo Lula tinha uma forte aproximação com o partido democrata e o mandato de Joe Biden, bem como com os países da União Europeia. Atribui-se tal posicionamento ao fato de esses governos não terem apoiado ou reconhecido a tentativa de golpe de Estado perpetrada pela oposição a Lula no início de seu mandato.

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Por essa razão, o Itamaraty se mostrou bastante cauteloso em relação a um alinhamento mais assertivo com China, Rússia e outros países do Sul Global. Como exemplo, podemos citar que Brasília demonstrou ceticismo diante da proposta de expansão do Brics+, recusou a adesão à Nova Rota da Seda e evitou um engajamento mais amplo nas discussões sobre processos de desdolarização e outros temas sensíveis dentro do grupo. Talvez por isso as expectativas sobre a Presidência brasileira no Brics+ estavam baixas. Essa postura pode estar associada a uma percepção de que as elites econômicas brasileiras preferem manter o alinhamento tradicional com os Estados Unidos, temendo que um engajamento mais profundo com o Brics+ pudesse provocar reações negativas de Washington. Mais recentemente, isso havia sido previamente comemorado internamente, porque o Brasil até então não havia sido alvo de tarifas pesadas dos Estados Unidos no dia do chamado “Liberation Day”.

Atacar Brasil para enfraquecer China e Brics: o que Trump realmente busca com tarifaço?

A recente decisão de Trump de impor pesadas tarifas ao Brasil e adotar sanções às autoridades brasileiras mudou esse cenário. O presidente estadunidense já havia manifestado anteriormente que o Brics+ representa uma ameaça ao domínio do dólar e aos Estados Unidos, mas foi exatamente durante a cúpula do Rio de Janeiro que divulgou as informações sobre a possibilidade de imposição de tarifas diretas ou secundárias aos países do grupo. O anúncio dessa medida despertou o interesse e ampliou a cobertura internacional de uma cúpula que até então havia sido caracterizada como de “pouca relevância”. Contrariando as expectativas iniciais, houve avanços significativos na reunião do grupo, e a declaração final logrou êxito em fazer progredir novas agendas, particularmente no que se refere à governança da inteligência artificial e à regulação das Big Techs.

Foi nesse contexto que o anúncio sobre as tarifas veio à tona. Diferentemente das razões para aplicação de tarifas a outros países, que atribuíam uma posição de desvantagem dos Estados Unidos no comércio bilateral, as justificativas imputadas por Trump para decretar tais sanções ao Brasil são de cunho estritamente político-ideológico. Nesse caso, há uma intromissão e ingerência direta em assuntos internos do Brasil, nas decisões da justiça brasileira e, mais importante, nas próximas eleições presidenciais. Não é comum no cotidiano político brasileiro que a política externa assuma tamanha relevância no debate público. Considerando os efeitos que tal medida pode ter na economia brasileira, como desemprego, inflação e aumento dos juros, a população tende a sentir esses impactos diretamente em seu cotidiano. Essa questão pode ser estrategicamente utilizada pelo governo brasileiro para justificar eventuais dificuldades econômicas e atribuir responsabilidade aos Estados Unidos. Mais do que isso, permite associar a imagem de Trump à oposição ao PT, sobretudo ao principal adversário político de Lula, Jair Bolsonaro.

Conforme já demonstrado por diversos setores da sociedade brasileira, a imagem da família Bolsonaro saiu bastante prejudicada devido ao seu alinhamento político e ideológico com Trump, inclusive sob a acusação de ter conspirado junto ao partido republicano para que tais tarifas fossem adotadas no intuito de “prejudicar o Brasil” e, assim, enfraquecer o governo Lula. O resultado foi o oposto do esperado.

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Esta interferência externa, em certa medida, catalisou uma convergência, entre os setores produtivos da economia e a elite política brasileira, em torno de uma resposta coordenada às pressões estadunidenses e de apoio à liderança de Lula. Diante dessa ameaça tarifária, o atual governo encontra uma oportunidade estratégica para revitalizar narrativas nacionalistas que até então haviam sido relegadas a segundo plano, rearticulando discursos sobre soberania nacional, autodeterminação e resistência ao “imperialismo norte-americano”. Tal contexto permite, simultaneamente, o fortalecimento da imagem presidencial de Lula como um líder forte capaz de defender os interesses nacionais frente a pressões externas.

Mesmo que haja um eventual recuo de Trump, como já observado em outras ocasiões, o dano nas relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos parece irreversível. Essa deterioração forçará Brasília a retomar um engajamento mais assertivo com a diplomacia Sul-Sul e até mesmo com a integração sul-americana como forma de responder à política hostil de Washington. Nesse sentido, pavimenta-se o caminho para uma reorientação estratégica da política externa brasileira, que já vinha se redesenhando desde a ascensão de Trump. A medida do republicano apenas serviu para despertar ainda mais as elites brasileiras e o Itamaraty sobre a necessidade de incrementar as parcerias comerciais com o Brics+ e, eventualmente, assumir um posicionamento que pode não atender aos interesses ocidentais.

Em ascensão contínua, Brics é o principal opositor ao imperialismo dos EUA

Os países europeus parecem oferecer um apoio limitado ao Brasil neste contexto. O tão falado “Acordo Mercosul-UE”, até então considerado prioritário pela diplomacia brasileira, não consegue avançar e nem mesmo responder adequadamente às demandas comerciais do país nesta nova conjuntura. Além disso, este acordo aparenta não ter a mesma prioridade para os países europeus. É evidente que o Brics+ e, especialmente, a China surgem como alternativas importantes com potencial significativo para este redirecionamento, não apenas na busca pelo estímulo do comércio intragrupo, mas sobretudo como catalisadores para o reengajamento brasileiro nas discussões sobre multipolaridade, desdolarização e comércio em moedas locais. Ao final, o episódio das tarifas de Trump representa mais do que uma crise comercial pontual: constitui um momento de inflexão que pode redefinir permanentemente a inserção internacional do Brasil. A aparente convergência entre elites econômicas e políticas brasileiras em torno de uma resposta coordenada ao unilateralismo estadunidense sinaliza, pelo menos no momento atual, um certo esgotamento do modelo de alinhamento preferencial com Washington que caracterizou grande parte da política externa brasileira.

Diante da crescente polarização externa, o Brasil se vê confrontado com uma escolha estratégica inevitável: manter-se numa posição de ambiguidade que se torna cada vez mais insustentável, ou assumir um protagonismo mais assertivo na construção de uma ordem multipolar. As limitações evidentes do eixo transatlântico, exemplificadas pela paralisia do acordo Mercosul-UE e pelo relativo desinteresse e prostração do apoio europeu, contrastam com as oportunidades e o dinamismo oferecidos pelo Brics+. Como já demonstrado em outros casos, a política de Trump com vistas a constranger os países do Sul-Global através de medidas coercitivas parece precipitar exatamente o processo que buscava impedir.

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