chegou-a-hora-de-o-mercosul-debater-uma-estrategia-de-defesa-regional

Chegou a hora de o Mercosul debater uma estratégia de defesa regional

Olhemos as coisas com honestidade: quando falamos de integração regional, quase sempre pensamos em tratados comerciais, em tarifas que sobem e descem, em intrincados blocos econômicos. Tudo muito técnico, não é verdade? Números, porcentagens, cláusulas. Mas a verdade é que, poucas vezes — pouquíssimas — paramos para pensar por que, após mais de 30 anos de vida compartilhada, o Mercosul não conseguiu dar sequer um passo firme, decidido, rumo a uma verdadeira integração em matéria de defesa. Por que esse silêncio tão persistente, quase ensurdecedor, sobre um tema que, gostemos ou não, continua sendo crucial?

Para tentar desfazer esse nó, é preciso se permitir uma viagem ao passado, aos próprios alicerces do bloco. Lá por 1991, quando o Mercosul dava seus primeiros vagidos, nossos países — Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai — mal estavam despertando de suas noites mais longas e escuras. Falamos de ditaduras, de desaparecimentos que ainda doem, de um medo que se respirava no ar. As democracias eram, naquela época, criaturas frágeis, recém-nascidas, que caminhavam com pés de chumbo. Nesse contexto, qualquer tentativa de sussurrar a palavra “defesa” já despertava receios, acendia alarmes. Era, digamos sem rodeios, um tema incômodo, quase tabu. Como se mencioná-lo pudesse, de alguma forma mágica e terrível, trazer de volta aqueles fantasmas do autoritarismo militar que tantos preferiam, com justa razão, não nomear.

A literatura especializada é unânime nesse ponto: as democracias nascentes tendem, quase por instinto de sobrevivência, a priorizar a estabilização econômica em detrimento de qualquer outro aspecto da cooperação entre Estados. E essa tendência, que já é forte por si só, acentua-se ainda mais quando há um passado recente de autoritarismo militar, como infelizmente foi o caso dos sócios fundadores do Mercosul. Os regimes militares que assolaram o Cone Sul (Brasil entre 1964 e 1985, Argentina de 1976 a 1983, Uruguai de 1973 a 1985, e o longo período do Paraguai entre 1954 e 1989) deixaram uma herança pesada: uma desconfiança profunda, quase visceral, em relação a qualquer discussão que cheirasse a quartel ou a estratégia militar. Instalou-se uma “cultura do silêncio” sobre temas castrenses que, lamentavelmente, foi institucionalizada nos primeiros anos de democracia, minando desde o início as possibilidades de tecer laços de cooperação regional nessa matéria tão sensível.

Esperança de libertação à América Latina, Celac desafia OEA e impulsiona mundo multipolar

Portanto, a verdade é que não deveria nos surpreender tanto que, naquele momento fundacional, os governos tenham preferido concentrar todas as suas energias, toda a sua artilharia política, na economia. Era um terreno mais fácil de transitar, mais tangível em seus resultados e, sobretudo, muitíssimo menos conflituoso. E assim, a defesa ficou tristemente fora de jogo, relegada a um canto escuro do tabuleiro regional.

Com o passar do tempo, no entanto, houve tentativas — algumas mais tímidas que outras — de saldar essa velha dívida. Talvez a mais ambiciosa, a que mais expectativas despertou, tenha sido o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) da UNASUL, por volta de 2008. Foi pensado como um espaço para se olhar nos olhos, dialogar, construir essa confiança tão esquiva, compartilhar estratégias sem que ninguém precisasse ceder um milímetro de sua soberania. E, por um momento, parecia que a coisa funcionava. Houve reuniões, exercícios militares conjuntos e chegou-se até a começar a gestar uma incipiente comunidade de defesa a nível regional. Mas durou o tempo de um suspiro. Bastaram algumas mudanças de rumo nos governos de turno, o retorno das velhas desconfianças e os ventos ideológicos cambiantes para que todo aquele esforço se desfizesse como um castelo de areia diante da primeira onda. Os estudiosos que analisaram essa experiência apontam vários fatores para seu êxito inicial — liderança política consensual, um contexto geopolítico favorável com governos de viés progressista, e um enfoque inteligente em medidas de confiança mútua —, mas também para seu posterior desmoronamento: as mudanças ideológicas, as crises econômicas que sempre atingem primeiro o social e o cooperativo, a polarização regional e, fundamentalmente, a falta de uma institucionalização efetiva que lhe desse raízes mais profundas.

Assine nossa newsletter e receba este e outros conteúdos direto no seu e-mail.

Hoje, em um mundo que se tornou muito mais incerto, mais volátil, mais desafiador do que nunca — um planeta onde os problemas já não reconhecem fronteiras nem pedem permissão para cruzá-las: pandemias, crises humanitárias, catástrofes climáticas e ciberataques que podem paralisar um país inteiro em questão de segundos —, será que podemos realmente nos dar ao luxo de continuar ignorando o valor, a necessidade imperiosa, de uma defesa comum, ou ao menos coordenada?

Os obstáculos, não nos enganemos, são enormes, mas não somos os primeiros a tentar algo assim. (Imagem: Rawpixel / Modificado)

Porque, além disso, as Forças Armadas de hoje já não são — ou pelo menos não deveriam ser — apenas aqueles instrumentos de guerra que conhecemos no passado. Nestes últimos anos, e muitas vezes em silêncio, elas têm demonstrado isso com sobras. Vimo-las nas ruas distribuindo alimentos quando a crise apertava, montando hospitais de campanha em tempo recorde quando o sistema de saúde colapsava, levando vacinas e esperança aos rincões mais remotos e inacessíveis da nossa geografia. Com uma eficácia silenciosa, mas contundente. Não é esse um capital estratégico — humano e logístico — que vale a pena aproveitar, que merece ser potencializado regionalmente? A literatura acadêmica fala de uma “multifuncionalidade” crescente das instituições militares: desde o apoio ao desenvolvimento e operações de paz sob a bandeira das Nações Unidas, até a crucial gestão de desastres e um apoio — sempre controverso e que exige marcos claros — à segurança pública.

Discrepâncias

Mas claro, e é aqui que a coisa se complica: propor hoje uma agenda comum de defesa no Mercosul não é simplesmente uma questão de boa vontade ou de reconhecer o óbvio. A verdade é que o panorama político regional está profundamente marcado por desencontros ideológicos e por estratégias de inserção no mundo que, com frequência, seguem direções completamente opostas — quando não abertamente antagônicas. E nesse rio revolto, a Argentina, lamentavelmente, parece se encontrar em uma encruzilhada particularmente complexa, quase um beco sem saída visível no curto prazo.

Cordão antifascista: volta de Trump exige integração latino-americana contra extrema-direita

A política externa do atual governo argentino se caracteriza por um alinhamento quase automático com os Estados Unidos. Uma postura que muitos de nós associamos, com um arrepio, àquelas tristemente célebres “relações carnais” dos anos 1990, impulsionadas com fervor durante o menemismo. Essa orientação, que privilegia a relação bilateral com Washington acima de quase qualquer outra consideração, reduz drasticamente os espaços de autonomia nacional e, o que é ainda mais preocupante para a integração, coloca a Argentina completamente fora de sintonia com as prioridades de soberania estratégica e fortalecimento regional que, com nuances, parecem ser promovidas por outros sócios-chave do bloco. Os analistas concordam: estamos assistindo à desvalorização dos mecanismos de integração regional e à priorização de vínculos extrarregionais.

Em contraste — e isso torna o cenário ainda mais intricado — vemos que Brasil e Uruguai, por exemplo, são atualmente liderados por governos que, apesar de suas naturais diferenças internas e dos próprios desafios, demonstram uma disposição muito mais clara de reposicionar a América do Sul como um ator com voz própria, como um sujeito político autônomo no complexo cenário global. Enquanto uns olham insistentemente para o Norte em busca de validação e diretrizes, outros apostam no fortalecimento do que é próprio, do que é regional. E nesse vaivém, nessa dança de interesses e visões tão díspares, pensar sequer em uma defesa compartilhada, em uma estratégia de segurança consensuada, torna-se, hoje, uma tarefa titânica — quase uma quimera.

Integração real

Chegados a este ponto, poderíamos nos perguntar com genuína frustração: para que insistir? Se tudo é tão complicado, se as vontades políticas não acompanham, faz sentido continuar insistindo nessa ideia de cooperação em defesa? A verdade é que sim. Pode soar idealista, talvez. Mas também soa profundamente necessário. Porque, se não somos capazes de nos proteger mutuamente, de planejar juntos como enfrentar o inesperado, de estender a mão quando a situação aperta de verdade… então, para que serve realmente uma integração, além dos frios números do comércio?

O Mercosul, apesar de seus tropeços e crises, tem uma nova oportunidade sobre a mesa. Não se trata — e isso precisa ser repetido mil vezes — de montar um exército comum nos moldes europeus, nem de uniformizar doutrinas militares que respondem a realidades nacionais distintas. Nada disso. Trata-se de algo muito mais sensato e urgente: pensar juntos como podemos cooperar de forma mais eficaz, como podemos nos preparar como região para os imprevistos que sempre chegam, como podemos nos ajudar mutuamente quando a situação realmente se complica. E tudo isso, fundamentalmente, com regras do jogo claras e transparentes, com uma perspectiva eminentemente civil sobre o tema, e com o foco sempre voltado para o bem-estar e a segurança de nossa gente.

Que tal acompanhar nossos conteúdos direto no WhatsApp? Participe do nosso canal.

Na prática

Como viabilizar isso? Os especialistas sugerem caminhos baseados no gradualismo — começar por áreas menos sensíveis —, no funcionalismo — focar em problemas concretos com soluções técnicas —, na flexibilidade institucional e, crucialmente, no inegociável controle civil sobre qualquer iniciativa. Poderíamos começar por coordenar de fato nossos protocolos para a gestão de desastres e emergências — e não nos faltam casos. Compartilhar capacidades logísticas, desenvolver sistemas de alerta precoce que funcionem para todos, treinar juntos nossas equipes de resgate. Pensemos na cibersegurança: desenvolver capacidades conjuntas de ciberdefesa, trocar informações sobre ameaças que não reconhecem bandeiras, proteger infraestruturas críticas que frequentemente atravessam fronteiras. Inclusive, por que não, explorar projetos de desenvolvimento conjunto em uma indústria regional de defesa, que gere tecnologia e empregos locais, padronizando equipamentos para facilitar a cooperação. E, claro, fortalecer nossa participação conjunta em operações de paz e ajuda humanitária internacional, onde nossa região tem tanto a contribuir.

Para isso, seria necessário um arcabouço institucional, sim, mas flexível: talvez um Conselho de Ministros da Defesa que defina a direção política, uma Secretaria Técnica ágil que coordene o dia a dia, comitês de especialistas para temas específicos, e até um Centro de Estudos Estratégicos do Mercosul que pense a região em uma perspectiva de longo prazo.

Os obstáculos, não nos enganemos, são enormes. A falta de um consenso estratégico básico sobre quais são nossas ameaças comuns e nossas prioridades é, talvez, o maior deles. A endêmica instabilidade política de nossos países, com mudanças de governo que frequentemente implicam começar tudo do zero, tampouco ajuda. Persistem velhas rivalidades históricas, desconfianças que se recusam a morrer e pressões de potências extrarregionais que muitas vezes preferem a lógica do “dividir para reinar” das relações bilaterais. A isso se somam as assimetrias de capacidades militares e econômicas, as eternas restrições orçamentárias — que sempre penalizam primeiro a defesa ou a cooperação — e uma dolorosa defasagem tecnológica.

Fim da pobreza e integração regional: as chaves contra o narcotráfico no Equador e na América Latina

Mas não somos os primeiros a tentar algo assim. A União Europeia, com todos os seus percalços, oferece lições valiosas: eles também começaram aos poucos, construindo confiança, focando inicialmente na gestão civil de crises e mantendo a compatibilidade com estruturas pré-existentes, como a Otan. Sua experiência nos ensina a importância vital de um consenso político sustentado ao longo do tempo, de instituições que funcionem de verdade, e do valor de começar por projetos menos controversos para ir ganhando tração.

Então, o que fazer? Primeiro, construir esse consenso político que hoje não temos. Diálogo, diálogo e mais diálogo entre os responsáveis pela defesa. Implementar medidas concretas de confiança mútua: mais intercâmbios militares, exercícios conjuntos transparentes, clareza nos gastos com defesa. Envolver nossos parlamentares, que são a voz do povo, nesse processo. E avançar com um desenvolvimento institucional gradual, começando pelo técnico, pelo funcional, com estruturas flexíveis que permitam diferentes níveis de compromisso.

O fato é que, no fim das contas, construir uma defesa regional não tem nada a ver com se armar até os dentes, nem com se preparar para uma guerra inexistente entre irmãos. Tem a ver com algo muito mais profundo e humano: cuidar uns dos outros, tecer as redes de contenção e solidariedade de que tanto precisamos. Significa ter a coragem, de uma vez por todas, de pensar e imaginar um futuro em que a segurança e a proteção não sejam privilégio de uns poucos afortunados, mas uma responsabilidade compartilhada, um direito de todos os que habitamos este rincão do mundo. O desafio é considerável, não há dúvida. Mas a oportunidade histórica, se soubermos enxergá-la e tivermos a coragem de aproveitá-la, também é. Talvez seja hora de parar de adiar essa conversa pendente — pelo bem de todos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *