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Trump, tarifas e indústria brasileira: que história é essa de soberania nacional?

Durante a cúpula do Brics, no Brasil, durante o último fim de semana, Donald Trump já havia postado em sua rede Truth Social que empregaria uma taxa de 10% nos produtos de países que se alinhassem ao bloco, mas o anúncio não gerou muita comoção. 

Perguntado sobre a questão, Lula respondeu: “Na reunião do Brics ninguém tocou nesse assunto, ou seja, como se não tivesse ninguém falado. Não demos nenhuma importância a isso”. 

Lula disse, ainda, que os países são soberanos e que, se os Estados Unidos impuserem tarifas, os outros têm o direito de fazer o mesmo.

Três dias depois, nesta quarta-feira (09/07), o presidente dos Estados Unidos voltou a anunciar uma ameaça, desta vez diretamente ao Brasil. Em carta ao presidente Lula, Trump afirmou que seu país vai impor uma tarifa de 50% aos produtos importados do Brasil que ingressarem no mercado estadunidense. 

No texto, afirma que uma das razões para a medida é o fato de Jair Bolsonaro (PL) estar sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe de Estado, o que considera uma caça às bruxas. Em outro trecho, alega que as atuais relações comerciais entre os dois países seriam supostamente injustas com os estadunidenses.

Por fim, a carta também estabelece que a nova taxação passaria a vigorar a partir do dia 1º de agosto, e acrescentou: “essas tarifas podem ser modificadas, para cima ou para baixo dependendo de nosso relacionamento com seu país”.

Na noite de quarta, o governo brasileiro respondeu afirmando que o processo judicial contra os que planejaram contra a democracia do Brasil é de “competência apenas da Justiça brasileira” e, portanto, “não está sujeito a nenhum tipo de ingerência ou ameaça que fira a independência das instituições nacionais”. “Neste sentido, qualquer medida de elevação de tarifas de forma unilateral será respondida à luz da Lei brasileira de Reciprocidade Econômica”.

Ainda na resposta, Brasília afirma que é falsa a informação de que há “déficits comerciais insustentáveis” entre os países. Trump alegou, ao impor a nova taxa, que tal déficit seria uma grande ameaça à economia estadunidense e à segurança nacional, ao que Lula respondeu que “as estatísticas do próprio governo dos Estados Unidos comprovam um superávit desse país no comércio de bens e serviços com o Brasil da ordem de 410 bilhões de dólares ao longo dos últimos 15 anos”.

Pelas redes sociais, Lula afirmou também que o Brasil é um país soberano, com instituições independentes e que “não aceitará ser tutelado por ninguém”.

Todo o episódio, que agora figura entre os trend topics mundiais, reafirma a necessidade do debate, há um certo tempo esquecido no Brasil em sua totalidade complexa, acerca da soberania nacional

É verdade que, na atual conjuntura global, com conflitos despontando em diversos cantos do mundo, estamos o tempo todo falando sobre soberania. Recentemente, com os ataques promovidos por Israel e os Estados Unidos contra o Irã, a questão foi amplamente discutida. No início do ano, com o aprofundamento da guerra comercial entre os EUA e a China, a mesma coisa. Diante disso, contudo, no Brasil, foi preciso uma ameaça direta para retornarmos a falar no assunto. 

Mas, afinal, do que estamos falando quando falamos de soberania? Por que, mesmo sendo um país independente, precisamos também ser um país soberano? O que tudo isso significa na prática? 

Soberania e dependência 

Quando falamos de soberania, dizemos respeito à capacidade de um país de fazer prevalecer a sua vontade em seu próprio território. No caso do Brasil e desse episódio com Donald Trump, a soberania expressa-se justamente na capacidade brasileira de fazer prevalecer, diante da tentativa de interferência estadunidense, o julgamento de suas próprias instituições. Além disso, necessariamente, se refere à capacidade de, mesmo diante de coerção – no caso as tarifas –, conseguir fazê-lo.

Essa capacidade de manter suas determinações gira em torno da capacidade de independência de um país frente a outros, na sua capacidade de resistência e de autonomia.

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Durante o século 20, uma série de debates no mundo girava em torno do que seria essa soberania. Nessa época, predominava-se uma visão econômica sobre o assunto, que dizia respeito, em síntese, sobre industrializar um país, aumentar sua capacidade produtiva, produzir ciência e tecnologia e, a partir dessa base material, conseguir produzir um Estado forte, com capacidade de defesa e posição soberana na ordem internacional. O que se debatia, portanto, girava em torno da dualidade “desenvolvimento” vs “subdesenvolvimento”. 

Essa perspectiva, posteriormente corroborada pelos estudos da chamada Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), determinou por quase todo o período do século 20 a linha seguida pelos governos brasileiros sobre o processo de desenvolvimento nacional. Nessa lógica, era necessário completar o processo de transição do país para o sistema capitalista, tornando a produção brasileira muito mais complexa, e assim o desenvolver nos moldes do que havia sido feito nos países do centro capitalista. 

Industrializar o país estava na ordem do dia durante todo o período, contudo, o processo jamais se concretizou de maneira esperada. O Brasil nunca saiu de uma posição subalterna dentro da Divisão Internacional do Trabalho (DIT), sendo sempre relegado a servir de agroexportador para os países do centro.

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Nesse contexto, os teóricos da chamada Teoria Marxista da Dependência (TMD) diagnosticaram a incompletude do que se debatia enquanto desenvolvimento até então. Para eles, o processo de transição para a economia capitalista jamais levaria o Brasil a se desenvolver nos mesmos moldes que os países do centro porque sua própria burguesia nacional estava subordinada aos interesses dos países centrais. Nesse sentido, mesmo industrializando, urbanizando e modernizando, não teríamos soberania porque estaríamos sempre subordinados a interesses que não os nacionais, mas os capitalistas. 

Não é possível desvincular os debates sobre desenvolvimento e soberania nacional de uma perspectiva classista que entenda que, apenas por meio de um horizonte de reconstrução estrutural do sistema produtivo e das relações de produção, será possível superar o estado de dependência (Imagem: Gustavo Juliette / Unsplash)

Ruy Mauro Marini, um dos principais nomes da TMD no Brasil, afirma que a relação de permanente dependência dos países da chamada periferia do capitalismo frente aos países do centro se torna definitiva no momento em que ocorre, simultaneamente, a independência dos países latino-americanos e a Revolução Industrial na Inglaterra. Esses acontecimentos geram o cenário favorável para a criação de um vínculo econômico entre os países recém-libertos, onde predomina uma economia agroexportadora, e a Inglaterra, que via a necessidade de especializar sua mão-de-obra industrial.

O desenvolvimento da relação de dependência pode ser explicado, portanto, quando os países centrais do sistema capitalista passam a forçar os países periféricos a se especializarem na produção de bens-primários, para que exportem esses produtos e abasteçam as indústrias das nações do centro. Assim, para Marini, a divisão internacional do trabalho representou a consolidação da dependência, configurada de modo a determinar um desenvolvimento específico para a América Latina, a fim de manter a relação de dependência.

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Nesse cenário, apesar de a dependência poder ser construída forçadamente, através de conflito militar e restrições alfandegárias, há uma tendência de que esses meios se tornem desnecessários. Isso porque a dependência altera a seu favor e a nível nacional o modo de produção dos países dependentes. Nesse processo, a estrutura econômica de cada país é desenvolvida no sentido de manter a dependência, em vez de superá-la.

Assim, a relação entre soberania e desenvolvimento torna-se mais complexa do que a empregada no início do debate. A teoria marxista da dependência demonstra como o processo de desenvolvimento nacional dentro dos moldes do sistema capitalista torna impossível a completude do processo de soberania, uma vez que produtivamente sempre estaremos, enquanto periferia do capitalismo, estruturalmente subordinados aos países do centro.

Soberania brasileira 

Não é novidade que, apesar de tentativas nacional-desenvolvimentistas empregadas em diversos moldes na história recente do país, não conseguimos consolidar uma complexificação produtiva no Brasil. Sobretudo após as reformas neoliberais implementadas pelo governo FHC, o país retrocedeu enormemente, mantendo-se na posição contraditória de potência agrário-exportadora. 

A despeito, também, de tímidas tentativas empregadas pelos governos petistas durante o início dos anos 2000, o caráter conciliatório que marca seus governos impediram uma verdadeira mudança produtiva no país, que se mantém primordialmente na produção de bens primários. 

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No âmbito mais “simbólico” desse processo, é notória a tentativa do governo Lula 3 de colocar o Brasil em uma posição privilegiada em âmbito internacional por meio de um peso maior a sua política externa, se aproximando de potências globais, como é evidente o caso da França, e dando grande peso à consolidação do Brics. Entretanto, estar perto do poder não é ter poder. Nesse cenário, nos mantemos enquanto párias dentro da DIT, afinal, mesmo o Brasil sendo um país popular, é a economia que move o mundo, e não as boas relações. 

Quando voltamos a encarar o episódio com Trump, a despeito da enorme burrice política do estadunidense, mesmo que a polêmica seja concretizada e leve a um maior afastamento do Brasil em relação aos Estados Unidos e uma maior aproximação e concretização do projeto multipolar do Brics+, o que isso muda para o Brasil? 

Até agora, e levando em conta a prematura consolidação do bloco, continuamos seguindo a lógica da Divisão Internacional do Trabalho enquanto país agroexportador. Analisando as relações comerciais entre a China e o Brasil, vemos que se mantém a lógica de exportação de bens primários e importação de mercadorias de maior valor agregado. Trocamos de senhor, mas continuamos servos. 

É claramente diferente a forma como se dá a relação entre o Brasil e a China e é ainda mais clara a diferença entre China e Estados Unidos, sobretudo no que toca à intervenção em outros países. Porém, o que se deve chamar a atenção é que, mesmo mudando de parceiro, é somente por meio da alteração na estrutura interna que podemos de fato alcançar a soberania nacional. Nesse processo, entra mais uma vez o debate sobre não só o que está sendo dito sobre soberania, mas quem está dizendo.

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Nesta quinta-feira (10), uma série de políticos, entre eles a ministra do Planejamento e orçamento Simone Tebet e mesmo setores do agronegócio, vieram a público em defesa da soberania nacional, o que já era esperado uma vez que o produto da ação de Trump não poderia ser outro que não o aumento do patriotismo. Mas quem agora defende abstratamente a soberania são as mesmas figuras que vendem o país para as superpotências. 

Nesse contexto, de uma oportunidade histórica para o retorno da questão, não é possível desvincular os debates sobre desenvolvimento e soberania nacional de uma perspectiva classista que entenda que, apenas por meio de um horizonte de reconstrução estrutural do sistema produtivo e das relações de produção, será possível superar o estado de dependência. Como já anunciaram os teóricos da TMD, mesmo a burguesia nacional não defende os interessantes do país, mas somente os do capital.

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