Tanto a Rússia quanto a Ucrânia possuem “assuntos pendentes” que consideram necessário resolver para alcançarem um rascunho do plano de paz de Donald Trump. A negociação desses pontos foi transferida nesta terça-feira (25) para Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos, onde um enviado da Casa Branca se reuniu com delegações russas e ucranianas.
Foi divulgado que a função de mediação ficou a cargo de Daniel Driscoll, atualmente secretário do Exército dos Estados Unidos e funcionário muito próximo do vice-presidente J.D. Vance. Driscoll é apontado como futuro enviado da Casa Branca para a Ucrânia, a partir de janeiro de 2026, considerando a efetivação da renúncia do general Keith Kellogg.
Pelo lado ucraniano, a delegação foi chefiada por Kyrylo Budanov, diretor de inteligência militar do Exército. O nome à frente do grupo de negociadores russos não foi divulgado — segundo veículos como Axios e Financial Times, supõe-se que tenha sido o almirante Igor Kostyukov, que é diretor do GRU (sigla em russo da direção de inteligência militar do Exército russo) e já participou da rodada de contatos realizada em Istambul por russos e ucranianos.
Especialistas não acreditam que os três negociadores estejam autorizados a debater a totalidade dos pontos do plano de paz de Trump, seja em sua versão original de 28 pontos ou no modelo revisado por estadunidenses e ucranianos em Genebra, sem a participação dos russos, em 23 de novembro. Considera-se que, possivelmente, tenham se concentrado na troca de prisioneiros de guerra e civis detidos por ambos os lados. Também é possível que tenham abordado aspectos militares relacionados ao front.
Especulações sobre o acordo
Segundo fontes anônimas estadunidenses, o plano de 28 pontos se inspira no plano de 20 pontos sobre Gaza e, entre outros aspectos, inclui entregar à Rússia a totalidade do Donbass (as regiões de Donetsk e Lugansk, que seriam declaradas zona desmilitarizada), e Kiev teria que reduzir suas forças armadas duas vezes e meia, sem ultrapassar o limite de 200 mil efetivos; enquanto isso, a Rússia teria que devolver ao governo ucraniano as partes ocupadas de Kherson e Zaporíjia.
Esse último ponto — considerando que o Kremlin também já incorporou a totalidade de Kherson e Zaporíjia à Constituição como parte inalienável da Federação Russa — tampouco parece aceitável para Moscou.
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Na realidade, consideram analistas, enquanto não for publicado o plano completo de Trump, muito do que agora é divulgado pode ficar fora da versão final do documento — o que antes de mais nada exige o consenso de quem realmente importa: russos e ucranianos.
Negociações em Abu Dhabi sob sigilo
As conversas em Abu Dhabi foram realizadas a portas fechadas, a ponto de o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, afirmar nesta terça-feira (25) não ter notícias das negociações. Ao mesmo tempo, reiterou: “O projeto inicial de Trump é uma boa base para negociar, mas entendemos que sofreu modificações.”
A esse respeito também se declarou, em entrevista coletiva, o chanceler Serguei Lavrov, para quem os europeus “pretendem minar os esforços de Donald Trump” e “refazer o plano a sua conveniência”.
Lavrov destacou: “Os pontos-chave do plano de Trump se baseiam nos entendimentos alcançados na (cúpula de Putin e Trump realizada em) Anchorage (Alasca, local da recente cúpula entre Putin e Trump), o que nós saudamos”.
O ministro das Relações Exteriores russo expressou esperança de que Washington forneça a Moscou “a versão que consideram preliminar, assim que chegarem a um consenso sobre o texto com os europeus e ucranianos”.
E advertiu: “Se forem excluídos o espírito e a letra de Anchorage em relação aos entendimentos que estabelecemos, estaremos diante de uma situação completamente diferente (…) não sabemos até que ponto os estadunidenses defenderão sua posição e se poderão conter as tentativas de desviá-los do caminho correto”.
Em Kiev, o presidente da Ucrânia, Volodymir Zelensky, informou à imprensa, por meio do chefe de gabinete do presidente, Andriy Yermak, que quer se reunir com Trump.
“Espero que a visita do presidente Zelensky seja realizada o mais rápido possível porque isso permitirá ao presidente Trump continuar sua missão histórica de terminar esta guerra”, declarou Yermak em entrevista por Zoom ao meio estadunidense Axios.
Enquanto isso, a guerra segue seu curso e, na madrugada desta terça-feira (26), russos e ucranianos voltaram a atacar com drones e mísseis cidades de seus respectivos países, enquanto as tropas russas tentam cercar localidades em Donetsk e as ucranianas afirmam repelir essas incursões de pequenos grupos que, quando há neblina densa, penetram com motocicletas para evitar serem abatidos por drones.
O que Rússia e Ucrânia comentam sobre o plano
Rússia e Ucrânia entendem à sua maneira o chamado plano de paz de Donald Trump: o Kremlin insiste que se trata do rascunho de 28 pontos que o presidente estadunidense apresentou na semana passada e que, na opinião de especialistas, corresponde mais aos interesses russos. Kiev, por sua vez, assegura que esse projeto inicial já foi modificado em Genebra e agora consta de 19 pontos que a favorecem diante das exigências de Moscou.
Existe também uma contraoferta europeia ao plano de Trump, mas não está claro se será estudada separadamente ou se parte dela foi integrada ao rascunho elaborado na cidade suíça por estadunidenses e representantes de Kiev.
No domingo (23), em Genebra, ao término das conversações entre Estados Unidos e Ucrânia, sem a participação da Rússia, os chefes das delegações, Marco Rubio, secretário de Estado e conselheiro de segurança nacional, e o ucraniano Andriy Yermak, demonstraram “muita satisfação” pelos avanços alcançados.
Na manhã desta segunda-feira (24), o presidente da Rússia, Vladimir Putin, telefonou para seu colega da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, para reiterar o que já havia comentado na sexta-feira (21), numa reunião do Conselho de Segurança russo: que o plano de paz de Trump, o de 28 pontos, lhe parecia uma boa base para negociar um acordo político da “crise da Ucrânia”, embora ainda fosse necessário “discutir” alguns pontos.
Quase à mesma hora, desde Kiev, o mandatário ucraniano, Volodymyr Zelensky, informou: “[em Genebra] conseguimos manter sobre a mesa alguns pontos extremamente sensíveis” e foi sugerido seguir trabalhando “com os Estados Unidos e com nossos parceiros europeus para buscar fórmulas de compromisso que fortaleçam, e não que enfraqueçam a Ucrânia”.
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Enquanto isso, um assessor do gabinete da Presidência da Ucrânia, Oleksandr Bevs, resumiu uma versão ainda mais otimista em sua conta no Facebook: “A Ucrânia discutiu com os Estados Unidos cada ponto do plano proposto. O plano de 28 pontos, tal como foi divulgado, não existe mais: uma parte dos temas foi eliminada; outra, modificada de tal maneira que nenhuma objeção ucraniana ficou sem ser atendida.”
O periódico britânico Financial Times assegura que dos 28 pontos restaram 19 e que as questões mais controversas — os territórios ocupados e a adesão ou não da Ucrânia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) como garantia de segurança — serão decididas pessoalmente pelos presidentes Trump e Zelensky.
O meio RBK-Ucrânia destacou também que, em Genebra, a delegação ucraniana conseguiu uma posição mais favorável quanto ao número de efetivos de suas forças armadas, à fórmula para troca de prisioneiros de guerra e ao controle da central atômica de Zaporíjia.
Cabo de guerra
A versão inicial do chamado plano de paz de Trump continha linhas vermelhas que afetavam tanto a Ucrânia quanto a Rússia, embora — segundo analistas — mais a Kiev do que a Moscou. Agora, parece ser o contrário, embora o Kremlin acredite que ainda há muito a negociar e que poderá reverter a situação.

Por ora, o assessor de política externa da presidência russa, Yuri Ushakov, após a conversa telefônica de Putin com Erdogan, criticou o fato de que Moscou não discutiu nenhum documento oficial para uma solução negociada.
“Nos fizeram chegar a um projeto que seria debatido e que, como vocês sabem, será reformulado por nós e, certamente, também pelas partes ucraniana, estadunidense e europeia. É um assunto muito sério. Mas até agora ninguém o discutiu conosco”, disse Ushakov à imprensa russa.
A variante que Moscou recebeu “está em sintonia com os entendimentos alcançados no Alasca. Muitas de suas propostas nos parecem razoáveis, mas outras requerem uma análise aprofundada e discussão entre as partes”, comentou.
Questionado sobre o documento alternativo atribuído à União Europeia, Ushakov declarou: “Quanto aos planos que estão circulando: apenas hoje soubemos pela imprensa que há um plano europeu, o qual — à primeira vista — não é construtivo e não nos convém.”
As primeiras notícias sobre o plano
Em 20 de novembro, o gabinete do presidente da Ucrânia confirmou que Vladimir Zelensky “recebeu oficialmente dos Estados Unidos um rascunho de plano que, segundo a avaliação da parte estadunidense, pode ajudar a revitalizar a diplomacia”. No mesmo dia, Zelensky se reuniu com uma delegação do Pentágono que visitou a Ucrânia, quando aproveitou para enfatizar os princípios que deveriam ser levados em conta para Kiev. Ainda segundo o gabinete da presidência, “as partes concordaram em trabalhar nos pontos do plano que possam conduzir a um final justo da guerra”.
“Nos próximos dias, o presidente da Ucrânia espera falar com o mandatário (Donald) Trump sobre as oportunidades diplomáticas existentes e sobre os pontos-chave necessários para alcançar a paz”, disse o comunicado, sem menções à Rússia, acrescentando: “Estamos prontos agora, assim como antes, para trabalhar de forma construtiva com a parte estadunidense e com nossos parceiros na Europa e no mundo para que o resultado seja a paz”.
No mesmo dia, o Kremlin evitou responder aos jornalistas o que pensa sobre o “plano de paz” de Trump, que seguia secreto e até então era alvo apenas de especulações. “Tais consultas não existem até hoje (20 de novembro). Contatos, sem dúvida, sim, existem”, reforçou o porta-voz da presidência russa, Dmitri Peskov, em coro com o chanceler Serguei Lavrov e o enviado econômico do presidente Vladimir Putin, Kiril Dmitriev.
“Posso dizer apenas o que repeti ontem (19 de novembro) em várias ocasiões: não posso acrescentar nada ao que foi comentado em Anchorage. Não há nada novo, embora qualquer momento seja bom para um acordo político.”
A chancelaria de Lavrov, desde que a imprensa internacional começou a vazar fragmentos do suposto plano de 28 pontos, reforçou que a Rússia até então não havia recebido oficialmente nenhum documento ou proposta dos Estados Unidos. Dmitriev, por outro lado, indicou que o documento é resultado de sua negociação com Steve Witkoff, enviado especial de Trump.
Possível cúpula em Budapeste entre Putin e Trump
Em 11 de novembro, o chanceler russo, Serguei Lavrov, afirmou: “Estamos dispostos a conversar com nossos colegas estadunidenses para retomar o trabalho preparatório de sua iniciativa para realizar uma cúpula (em Budapeste) entre os presidentes da Rússia (Vladimir Putin) e dos Estados Unidos (Donald Trump)”.
Lavrov esclareceu que na conversa que manteve em 20 de outubro com seu colega estadunidense, Marco Rubio, “não houve nenhuma saída de tom”, acrescentando: “Só confirmamos os entendimentos de Anchorage”, onde foi realizada a cúpula anterior. “Ficamos nisso. O próximo passo deveria ser o encontro de representantes de Relações Exteriores e Defesa (…), mas os estadunidenses se negaram a dar esse passo”, disse Lavrov, responsabilizando Rubio.
“Em vez disso, o que se seguiu foi uma declaração pública de que não fazia sentido se reunir. Rubio não esclareceu que havia algum tipo de conflito que impossibilitasse chegar a um acordo”, seguiu.
Testes nucleares
O chanceler russo também se referiu à confusão provocada pelo presidente dos Estados Unidos ao ordenar recomeçar “imediatamente os testes nucleares”, possibilidade que “causa inquietação” ao Kremlin. Em sua opinião, “é um notável desvio da concepção de que uma guerra nuclear não pode ser vencida e, portanto, nunca deve ser declarada”. A essa conclusão chegaram, nos anos 1980, os então mandatários soviético, Mikhail Gorbatchov, e estadunidense, Ronald Reagan.
Lavrov reforçou que até agora a Rússia não recebeu uma explicação sobre o significado das falas de Trump sobre teste nuclear: se realizaria uma explosão na superfície ou subterrânea ou apenas uma prova de portadores sem ogivas atômicas.
Lavrov afirmou que Moscou está disposta a conversar com Washington sobre “suas suspeitas” de que o exército russo realiza “de maneira encoberta” testes nucleares subterrâneos e negou que Putin tenha ordenado retomar as explosões atômicas em Nova Zembla.
“O presidente apenas nos encarregou de analisar a situação e chegar a uma proposta consensual sobre em que medida a situação exige estudar a questão da retomada dos testes nucleares”, esclareceu.
Escândalo Enorgoatom
O escândalo de corrupção na empresa pública ucraniana de energia atômica, Enorgoatom, tem atraído a atenção da população do país e pode desferir um duro golpe na imagem de Zelensky. O caso estourou em 10 de novembro, quando o Escritório Nacional Anticorrupção do país eslavo (NABU, na sigla em ucraniano) revelou ter desmantelado uma rede criminosa que, em plena guerra com a Rússia, se beneficiava com comissões ilegais.
Os danos a Zelensky podem se concretizar por dois motivos: primeiro, porque o presumido chefe da trama de corrupção, o controverso empresário Timur Mindich, era íntimo amigo do mandatário e seu sócio na produtora Kvartal-95 na etapa de Zelensky como comediante; segundo, pois Mindich saiu do país algumas horas antes de a Promotoria Especial Anticorrupção (FAS, na sigla em ucraniano) iniciar buscas em suas instalações.
Outro dos acusados, o ex-vice-primeiro-ministro Oleksiy Chernyshov, é considerado outro personagem muito próximo de Zelensky, e sua voz aparece em uma gravação – das quatro que a NABU tornou públicas – perguntando ao sócio de Mindich, Oleksandr Tsukerman (que também fugiu da Ucrânia), quando poderia recolher sua parte do dinheiro em espécie.
Ao todo, Chernyshov e um “mensageiro” (pela voz, poderia ser sua esposa) receberam 1,6 milhão de dólares e 100 mil euros. Ambos foram detidos pela FAS em 11 de novembro.
Em outra gravação, ouve-se o suposto contador da rede dizendo que “não é nada agradável” levar pela rua, rumo à “oficina”, uma caixa com 1,6 milhão de dólares.
O grupo aparentemente liderado por Mindich, exercendo sua influência pela proximidade conhecida com Zelensky e por seus contatos com membros do governo, exigia uma comissão ilegal entre 10% e 15% de todos os contratos de obras ou fornecimentos em suas plantas, com o que embolsaram ao menos um botim de 100 milhões de dólares. E mais: de acordo com a investigação da NABU, a quadrilha teria praticado os desvios mesmo sem ocupar nenhum cargo na Enorgoatom — que opera todas as centrais atômicas ucranianas —, atuando por meio de cúmplices no consórcio e no Ministério de Energia.
Zelensky tenta se desvincular do escândalo, o mais grave surgido nos três anos e meio de guerra. Em 12 de novembro, em uma mensagem à nação, pediu o “afastamento imediato” do ministro da Justiça, Herman Galuschenko (ex-titular da pasta de Energia), e da atual titular dessa pasta, Svitlana Grishuk, supostamente relacionados com a rede de Mindich.
Segundo informou nas redes a primeira-ministra, Yulia Sviridenko, de imediato ambos apresentaram sua renúncia, aguardando que os deputados da Rada cumpram a formalidade de votar suas demissões.
O Escritório Anticorrupção, que busca esclarecer como e onde os presumidos corruptos lavavam o dinheiro, tem conhecimento sobre um ramificado esquema de empresas intermediárias em “numerosos países, inclusive na Rússia”. A “lavanderia” se encontrava em um edifício que pertence a Andrei Derkach, filho do ex-diretor do Serviço de Segurança da Ucrânia, Leonid Derkach, ex-deputado da Rada e, atualmente, desde que se mudou para a Rússia, senador pela região de Astracã.
O secretário particular de Derkach, Igor Mironiuk, uma das peças-chave da rede de Mindich, quando começou a guerra, reapareceu na qualidade de assessor do ministro de Energia da Ucrânia, de onde pressionava as empresas contratantes a pagar as comissões ilegais.
De acordo com Ilia Shumanov, que se dedica a investigar a corrupção nos países eslavos, “uma parte considerável do dinheiro saqueado acabou na Rússia” e, como exemplo, menciona que “está documentada a rota seguida por várias transferências até chegar a Moscou, 2 milhões de dólares em uma única operação”.
O escândalo está longe do fim. Oleksandr Abakumov, investigador da NABU, declarou à imprensa ucraniana que “haverá continuação”.
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